domingo, outubro 15, 2006

PERDOA POR ME AGREDIRES

Toda mulher gosta de apanhar.
O homem é que não gosta de bater.
(Nelson Rodrigues)

Geninho e sua mulher ao mesmo tempo comprovam e dementem a obra de Nelson Rodrigues! Minha mãe e eu sabemos o quanto isso pode ser verdade: ela apanhava e de fato gostava; ele batia porque também gostava. E os dois tocavam a vida...

Na madrugada sonolenta estalavam tabefes, ecoavam palavrões e ofensas. Ladeira acima, lá iam cambaleantes, embriagados e trôpegos, esfolando-se nos pedregulhos, focinhando nas moitas de capim à beira do caminho. “Levanta, cadela, pra apanhá mais”, ordenava ele. Ela obedecia como quem não tem mesmo outra coisa pra fazer.

Quase toda tarde a cena se repetia: Geninho, a mulher e um cachorro magro desciam a ladeira em direção à vila. Desciam ainda sóbrios e um tanto envergonhados, como se antevissem o final daquela história. Passavam rápido e em silêncio diante do portão de nossa casa. No botequim tomavam todas, inclusive as do Santo. Tinha início, então, aquela via crucis pagã rumo ao barraco, ambos compartilhando o peso da mesma cruz.

O cachorro acompanhava de perto, maldizendo aquela vida de cão em uma família tão pouco civilizada. Nada sobrava para ele, que não bebia ainda... Porque do jeito que as coisas iam, a qualquer hora acabava contrariando sua própria natureza de cão e tomava umas e outras também. Só pra suportar o tranco.

A coitada apanhava, mas como apanhava aquela criatura! Às vezes reagia e partia pra cima dele, mas Deus fez as mulheres tão frágeis que umas unhadas e mordidas apenas temperavam a violência das bofetadas, dos socos e pontapés. Mas, ah o amor! Quem há de entender sua estranha lógica, sua alquimia improvável deslocando sentidos, transformando mal-cheiro em perfume, plantando jardins em baldios, traduzindo, às vezes, xingamento em poesia ou tapas em beijos.

Perplexas, minha mãe – zelosa funcionária do pequeno posto dos correios da Vila – e eu, sua assistente atenta, sentávamos para não cair. Provavelmente Geninho ainda dormia quando ela aparecia, na manhã do dia seguinte. O rosto desfigurado pelas porradas e pela cachaça, cabisbaixa, envergonhada, mas só um pouco: afinal, essa tal de vergonha, que toda mulher tem, a dela o estúpido cachorro magro já tinha lambido faz tempo.

O olhar vagava no nada. As mãos tremiam. Um hálito enferrujado de muitos porres acumulados lançava no ar uma voz arrastada, tentando explicar, sem que ninguém pedisse explicações. “Geninho me bate, tô toda roxa...”.

Os olhos lacrimejavam. Inútil aconselhar que largasse o marido: “Posso não, Dona Cléa, eu gosto dele!” Eu era menina demais pra entender aquelas peripécias do amor. Na volta pra casa, toda romântica, ela planejava enfeitar o barraco, colhendo por onde ia alguns galhinhos de maria-sem-vergonha...