quarta-feira, novembro 29, 2006

AS PESSOAS E AS COISAS (ou aqueles objetos que perduram depois de nós)

Quantas e quantas vezes aquilo chegou à mesa de nossa casa! Vinha com arroz soltinho e fumegante, que mamãe acomodava levemente, a boca cheia d’água, numa folha de alface, devorando ávida e estalando a língua entre os dentes branquinhos.

Às vezes vinha com vagem e dois ovos, traquinagens de meu pai, gourmet que misturava tudo com petit pois – sabe, aquela bolinha verdinha que só muito mais tarde passei a chamar de ervilha. Não sei por que ancestralidades anteriores à raiz nordestina, papai gostava desse trato à bola, afrancesava como convinha...

Mas, talvez já inquieto, o caro leitor se pergunta: o que é isto, ou melhor, o que é aquilo? Então eu respondo: trata-se de uma travessa oval de duralex branco, com raminhos de trigo azul pelas laterais, herança humilde do pequeno espólio de minha mãe querida.

Faz muitos anos, mas muitos anos mesmo, que essa travessa participa da intimidade da casa. Assim, como uma coisa entre coisas – a coisa-travessa dentro do rol de coisas que chamamos vida –, que é como percebemos de dentro nossas próprias emoções! Hoje me pergunto por que certos objetos (e quem não os têm!?) se fazem essas presenças tão perpétuas em nossas vidas?

Fico pensando nos egípcios, suas coisas encobertas em milênios de areia e pedra e pó. A conservação da matéria onde não mais circula e ferve o sangue. O jarrinho de barro, a pulseira de ouro, o ouro dos ritos e o ouro de tolo, a insistente tolice de perdurar a qualquer custo... Por quê? Escava. Descobre. Resgata. Mas nunca que ressuscita! Que fizeram ali, por longos e longos anos, aqueles objetos quase intactos, carcaças de sentido, como que numa busca desolada de alma?

Errantes em desertos vários, submersos em tempestades de areia, ressuscitados em sonhos breves, como oásis de significado na miragem da vida: as coisas lá estão, à espera de novas pessoas... Assim se comporta a travessa de louça – perfeitamente quebrável! – de mamãe! E, no entanto, indestrutível!

Foram-se minha mãe, meu pai e boa parte da família... A travessa teimosa subsiste. Defendendo-se de mãos apressadas e faxineiras afoitas, das minhas próprias mãos descuidadas e aflitas, depois de algumas taças de vinho, protegendo-se do encanto que chama do não-existir.

Aqui está, agora, na mesa da minha casa, dando esse mesmo sabor fumegante e antigo a um prato de camarão...

domingo, novembro 19, 2006

FELIZ CUMPLEAÑOS, ISABELITA

Nossas vidas a princípio não tinham que estar cruzadas: ela morando, como sempre, lá nas lonjuras de Itaperuna, eu vivendo na tribo, em Itambi, e aprendendo a desbravar Niterói. Mas foi aí que a mão do Destino, essa mão misteriosa na ponta de um braço longo e imprevisível, nos aproximou e nos uniu! Vai saber por quê!?

Entrei na vida dela de uma forma um tanto desgovernada, os puristas diriam, pela porta dos fundos! Quebrei o ritmo e a vidraça. Desfiz convenções, armários, consertos e arrumações. Ela quase me odiou (se pudesse odiar) e estabelecemos um embate. O casamento da Laninha com o Zé Roberto estava marcado para março e seria lá: combinamos o duelo...

Leitora e leitor desavisados e amigos, falo de Isabel. Isso, Isabel com “s”, minha... bem, que palavra coloco aqui? Depois que as piadas e as histórias, verdadeiras ou imaginárias, inventaram um tom pejorativo para a palavra “sogra”, ela não cabe mais neste lugar. Ponhamos então Isabel, com “s” de sinceridade, minha amiga.

Naquela tarde eternamente caliente de março, a Igrejinha de São Francisco, em Niterói aguardava os convidados. Enquanto me vestia pensava com meus botões (e brincos): que armas usaria? Busquei a ajuda do meu pai, Edgar sempre presente e disposto a ajudar, principalmente diante da recente perda de minha mãe. E partimos para o grande encontro, pouco depois do nascer do sol.

A vista da praia, do alto do morrinho de São Francisco, era lindíssima! A igreja florida aguardava os convidados – convidados para o que, mesmo? – e meu coração deflagrava uma enorme dúvida: quem venceria o duelo? Aproximei-me, entre turrona e tímida, observei seu rosto, igualmente curioso e tenso, fitei seus olhos e então não tive dúvida: tudo sairia bem!

Fiz pose, mostrei as armas (e os brincos), cantei alto no terreiro da igrejinha, enfim... Mas alguma coisa dentro de mim, muito silenciosamente, indicava que eu não bati em porta errada. Alguma coisa me dizia palavras de admiração e ternura. Ela sentiu a mesma coisa, tenho certeza! Acariciamos as armas (e os brincos) sem sacá-los. Ficamos só no suspense. The End: as letrinhas do final do filme começaram a correr na tela da imaginação.

Os anos se passaram...

Com o tempo, tomei liberdade para chamá-la Isabelita, essa mãezona que transita entre Lorca e Almodóvar. Uma mulher verdadeira, que tem nas veias o vertiginoso fluxo do sangue espanhol, encarnando la madre hispânica ou, mais proximamente, las Locas de Mayo até às últimas conseqüências... Intensa e presente, atenta a cada movimento em falso dos seus. Isabel é assim: agregadora e cuidadosa, sensitiva, zelosa como convém à boa mãe espanhola.

Hoje, Isabel Alvarez (nome de la sangre que não carrega, mas que lhe cairia muito bem) completa 74 anos. Vinte e tantos deles convivemos muito de perto, depois daquele primeiro duelo que não aconteceu! O que eu diria a ela hoje? Que valeu a pena, Isabelita! Pelas infinitas conversas, eu achando que sabia mais e o tempo me fazendo ver o contrário. Pelas muitas lágrimas que você viu escorrer no meu rosto sem dizer palavra, sentindo comigo, como eu bem gosto! Pelo silêncio, nosso jeito natural e sem frescuras de demonstrar cumplicidade e afeto...

Está próximo o dia do retorno ao nosso duelo que não houve, Isabelita, adiado desde o começo dos anos 80. Carolina, sua neta mais velha, vai se casar naquela mesma igrejinha! De novo os convidados e os dedos polindo as armas (e os brincos): quem sacará primeiro? Será ainda preciso? Afinal o tempo, senhor de todas as verdades, já nos mostrou com quantos paus se faz uma canoa e com ela, que tal uma voltinha pelas águas calmas da enseada de Charitas?

Remando, remando e olhando a rosa dos ventos! Conferindo que tudo é propício para a prole mergulhar... Feliz cumpleaños, Isabelita! Tienes razón. Tu hijo vale mucho. Como los míos que el tuyo me ha dado.

quarta-feira, novembro 15, 2006

A MISTERIOSA HISTÓRIA DE SER MÃE

Noite passada eu sonhei com meus filhos. Eles eram ainda bem pequenos, o mais novo quase um bebê, o mais velho ali pelos seus cinco aninhos! Acordei sem eles dormindo ao meu lado, aliás, como vinha acontecendo nas últimas noites, por conta de um feriado prolongado. Fiquei o dia todo assim meio esquisita, sonâmbula, procurando meu sonho perdido pelos cantos da casa, debaixo do travesseiro, nos desvãos de minha pobre alma amanhecida e carente de mãe.

Andei pela cidade dirigindo o carro, fiz um monte de coisas, conversei ao telefone, corri velozmente no ritmo de uma esteira de academia, enviei e recebi e-mails, conferi diversas vezes meu orkut e nada daquele vazio passar... Foi então que encontrei a ponta de um cordão suspenso, ou melhor, de dois cordões lembrando uma mesma história, a misteriosa história de ser mãe. Como um filme doce e suave passando ao revés diante dos meus olhos comovidos.

Estava eu ali, lembrando que um dia, cada qual a seu tempo, fomos um só. Que estivemos tão indissoluvelmente atados um ao outro que de nada adiantava agora trezentos quilômetros de lonjura, obrigações universitárias inadiáveis, novos compromissos pessoais, a vida independente como uma fera rugindo lá fora! Nada, nunca, nem a mais afiada das tesouras haveria de nos separar daqueles tempos de água e placenta, de dor e gemido, de choro, choro e riso, riso, riso...

Lembrei do exato momento em que cada um veio à luz. Pensei como é tudo tão perfeito nesse velho plano de Deus! Parir, lançar os filhos ao mundo numa vertiginosa busca de cumprir destinos, de fabricar destinos. Mantê-los por perto mesmo que longe; aceitá-los longe querendo tê-los por perto, tão perto, quase dentro... Amá-los infinitamente mais que a mim mesma e, no entanto, deixar que a vida por si se incumba de traçar-lhes os roteiros de viagem...

Pensei que toda criança que nasce, lançando ao vento seu destino, reinventa um coração de mãe, vulnerável e inquieto. Percorre de novo o mesmo caminho místico do coração de mãe, sobressaltado e arfante. Plantado no presente, um coração de mãe sonhando com futuros incertos, resgatando nostálgicos passados, cuidando para que o dia passe em perfeição e harmonia. Um coração sofredor e preciso, antecipando o próximo minuto, adivinhando o segundo seguinte no tempo dos filhos.

Pode ser que esse não seja todo o sentido da vida: o mundo é um mistério, afinal, e nele há muitas armadilhas... Mas só por ser mãe já valeu a pena existir.