sexta-feira, abril 20, 2007

TENHO PENA DE QUEM NÃO CHORA

Pai desculpe, mas estou começando a fazer algo que você não faria ou que não gostava de fazer, isto é, lembrar! Que fique bem claro, não por falta de assunto ou de ter concretamente no que pensar, até porque sua vida vária foi vivida intensamente! Não faria, estou certa, mais por uma decisão polêmica, embora sábia: lembrar dói... Está doendo agora, pai, e eu mal tomei essa minha insensata decisão.

Numa manhã muito, muito quente de fevereiro fui acordada com o trim do telefone. E todo o restante do dia que corria me fez entender que algumas dores nos levam para dentro de uma grande tela de cinema. A vida passando em slowmotion. Os sons são surdos e viajantes, as palavras escorrem com eco de uma boca seca e dormente. Você pai, haveria de morrer naquela tarde muito, muito quente de fevereiro, véspera de carnaval.

Paralisada diante de um prato de comida num self-service da vida (quem diria que da morte...), o celular golpeava meus ouvidos. Atendi e aquela voz fingindo preocupação perguntou feito um cometa, uma tempestade anunciada, um pierrot dobrando subitamente uma esquina: – A senhora está no trânsito? Não, não estava no trânsito, mas entendi de imediato o que havia acontecido.

Mais uma vez a tela de cinema estava presente, tudo tão rápido! Uma vertigem lenta, veloz e lenta de novo; uma profusão de cores e luzes e sons, na verdade não sei se lenta ou veloz, porque subitamente o tempo cessou de existir. Faltava ar na sala-de-espera do mundo! Eram tantas lembranças perfurando meu coração, como agulhas aquecidas no fogo de uma saudade que ainda nem começou. Lembro, aliás, de uma bem curiosa...

Lembra pai, sua mania de me tratar como menino: “Meu filho”, “Meu garoto”. Logo eu, tão frágil e tão imaginariamente companheiro de viagem, tão fiel na paixão por automóveis, tão mecânica e incondicionalmente filho, quase me sentia irmão de mim mesma, irmã de mim... O curioso é que eu aceitava tão bem o tratamento, entendia intuitivamente aqueles sinais, o que eles representavam. Enfim, eu, um equívoco...

Eu, filha de seu segundo casamento, entre e depois do filho e da filha do primeiro, ciumenta de ambos. Talvez fosse a comunhão daqueles dois irmãos ainda desconhecidos. Eu magrelinha, eu que precisava ser forte “como as árvores mais altas”, eu que para tudo isso precisava ser homem. Meus grandes olhos de jabuticabas maduras não podiam despertar a cobiça indecente de pássaros vagabundos. Que fossem então olhos de menino...

Fomos felizes e cúmplices, pai, sem que ninguém entendesse aquela estranheza de coisa. Até o trim do telefone naquela manhã de um dia quente, muito quente de fevereiro, em pleno carnaval. Até aquela hora triste em que não se entende nada, em que tudo se pergunta, em que se compreende que as respostas só virão depois, muito tempo depois, quando nada mais nos cabe fazer senão chorar e chorar e chorar...

Tenho pena de quem chora, cantava Gil, mas eu não: tenho pena de quem não chora! Foi o que fiz, chorar. Chorei como só uma mulher sabe fazer, talvez como todo homem devesse aprender. Chorei eu, menino-menina de meu pai, que aprendi e que esqueço de vez em quando que lembrar dói, dói muito, dói demais... Dói agora, pai, enquanto eu permaneço fiel a essa minha insensata e funda decisão de lembrar.