sexta-feira, setembro 21, 2007

AMA E LANÇA CHAMAS

Claro que o mistério que envolve nosso planeta é desafiador. Claro que ser talvez o único planeta, de uma em milhões de galáxias que se fez generosamente habitar, é coisa no mínimo surpreendente. Mas toda essa espantosa conexão de mistérios e desafios fica um pouco menor quando nos aproximamos desses seres, seus habitantes. Esses que germinaram por aqui, frutos de teorias que imaginam big bangs, de crenças criacionistas, enfim, do improvável que a todo custo queremos crer ou provar.

Criaturas que tornam possível, o impossível. Criaturas que crêem mesmo sem que nunca tenham visto a face de Deus. Criaturas que sonham sem saber o que espera por elas na próxima esquina. Criaturas que amam e odeiam com força igual, tanto faz, na criação como na destruição. São elas, indiscutivelmente, o que há de mais maravilhoso em todo esse abismo! Que, a essa altura, já deve intrigar meu improvável leitor: mas onde será que ela quer chegar? Acredite, ao meu irmão...

Como convém a uma contadora de histórias, comecemos pelo princípio. Soube que tinha um irmão quando comecei a me entender por gente, mas nunca o havia visto. Falavam dele na família. Seus traços eu desenhava naquela mente nebulosa e inquieta de criança. Sua personalidade eu descobria aos pedaços montando um quebra-cabeça com peças perdidas debaixo de um armário. E montava e remontava, curiosamente esquecia para recomeçar. Mas sem desassossego, como se previsse que o dia do encontro chegaria.

E chegou mesmo!

Tínhamos uma tia comum, dessas que abraçam a família e cuidam para que tudo conspire favoravelmente, na mais perfeita paz. Um anjo! Entrei pela porta da sala que faceava na calçada, sempre aberta, como costumava ser no interior. Havia um rapaz sentado no sofá. Perguntei meio tímida se Titia estava. Não estava. Ela havia saído. Fiquei por ali com um pressentimento. Fui ver os livros na estante: enciclopédias, dicionários, coleções coloridas compradas de mascates, com suas vistosas capas duras... Era absolutamente oportuno redescobri-las uma a uma, naquele instante!

Aí ele quebrou o silêncio. Disse sem querer exatamente dizer o que dizia: – Você é sobrinha de tia Zelina? Entendi tudo, eu conhecia todos os meus outros primos; se quem chamava Tia Zelina de tia não era primo... Perguntei: – Você é o meu irmão? Pausa para os comerciais, a seguir, cenas do próximo capítulo... Mas que nada! Era vida real! E não houve tempo sequer para retocar a maquiagem. Olhei aqueles olhos negros e brilhantes e não contive o abraço. O destino vencera, mais uma vez, em sua ardilosa preparação do acaso.

Lugares mais que comuns: parecia que o mundo parava por uns instantes; que apenas nós dois, confrontados e atônitos, vivíamos a emoção de achar um irmão perdido no labirinto chamado vida. Não me lembro exatamente do que falamos, sei somente que as palavras, na vontade de atualizar os fatos, brotavam como bolhas de uma fervura antiga que não secava! Depois daquele dia nos afastamos de novo. Por que será? Penso que porque agora sei, e saberei para sempre, que ele existe mesmo e que está logo ali...

Há algum tempo nos reencontramos de novo, por obra desses milagres virtuais que fazem os sites de relacionamentos. E marcamos de nos ver no dia seguinte ao meu aniversário, ele me levaria um presente – Um pedaço de mim, irmã –, como dizia. Dessa vez eu abri a porta sabendo que por ali entraria o meu irmão, um sujeito de alma pura, um cara de coração doce, uma eterna criança. Conversamos por horas. Observei-o virginianamente, ouvi suas histórias e atualizei as minhas, me alegrava seu sorriso amplo, lacrimejei por vezes sem que ele percebesse, senti a emoção de suas palavras e o admirei explicitamente.

Admirei secretamente, também, sua força e coragem: como nosso pai, ele parecia não temer os desvãos do mundo. Recebi, comovida, um cd especialmente gravado para mim, cuja capa fora composta com gosto e afeto por sua filha, minha sobrinha. Ouço agora essa deliciosa coletânea de rock progressivo. Meu irmão ainda é o mesmo que encontrei na sala da casa de Titia, o mesmo ser humano surpreendente, dizendo com aqueles olhos fulgurantes, enquanto fita uma nesga do céu de Niterói pela arinha do apartamento:

– Sabe, irmã, eu não consegui quase nada nessa vida! Mas Deus me deu um dom maravilhoso, que me faz uma pessoa muito feliz: eu sei fazer amigos!

Só me restava mesmo cantarolar, com Paulinho da Viola e Sergio Natureza, ama e lança chamas, assobia quando bebe, canta quando espanta mal olhado, azar e febre...