quinta-feira, janeiro 31, 2008

O VESTIDINHO DE CROCHÊ

A água escorria entre os grãos do feijão, iluminando um a um e logo vazando lépida pelos furos da peneira, enquanto eu pensava. Pensava em tanta coisa quanto era possível minha memória intermitente acender e apagar, vagalumeando na tardezinha nublada. Eu afundava os dedos no feijão, desavisada e esquecida, como quem acaricia uma cabeleira... Ah, e como pensava!

Foi então que me veio, entre um grão e outro que se perdia em sentido horário no abismo da pia, uma lembrança que parecia perdida entre tantas, no abismo anti-horário da memória: meu vestidinho de crochê. Eu tinha lá meus nove anos. Corria há algum tempo o murmúrio de que minha madrinha de batismo, uma figura de escassa presença em minha vida, tecia no mais belo ponto de crochê um vestidinho para mim. Ouvia e fingia não ouvir, já fascinada a espera do dia em que teria nas mãos o vestidinho.

Dormia pensando na cor, acordava com sua textura, seu cheiro na memória dos sonhos, a trama dos pontos, o emaranhado da linha. Que figura ela desenhava? Uma flor, um peixe, um sol, a roda de uma mandala? Dormia com figuras possíveis para um desenho que em sonho já cobria meu corpinho, me fazendo princesa até uma meia-noite qualquer.

Depois de longa e calada agonia, voltaram os murmúrios sobre a chegada do vestido. De novo meu coração se agitava. Rebate falso: a fada-madrinha ainda tecia infinitamente a trama, mulher de Atenas, como que numa demorada e inútil espera por seus guerreiros. Soube depois que ela era solteirona, expressão irreversível e cruel para mulheres que não encontraram seus companheiros a tempo, mas estabelecido por quem? Ela vivia a tecer, caprichosa e solitária aranha, o meu vestido-teia, quem sabe para que eu não tivesse a mesma sorte dela.

Chegou então o grande dia! Minha madrinha avisou que viria nos visitar, trazendo na bagagem o encantado vestidinho. Extremamente cerimoniosa, tímida, de pouquíssimos carinhos, uma economia enorme de afeto, eu entendia mesmo sem saber bem porque o motivo daquela solteirice. Não importa, eu queria mesmo era ver o meu vestido. Confesso cruelmente que quando a vi – a aparição dela era tão rara! – senti uma certa desolação. A figura pálida, esquálida, desengonçada e triste, nunca poderia tecer o vestido que era um sonho, vigoroso, mágico, arrasador! Não, não poderia. E não pôde.

De uma pequena caixa de camisa masculina, provavelmente de um irmão ou do pai, improvisou o embrulho arrumadinho para a entrega solene. Enfim, meu vestido de crochê. Abri com mínimas expectativas e me deparei primeiro com a cor: azul clarinho. Não que eu não gostasse de azul, mas aquele parecia ter dormido meses a fio debaixo de chuva fina, e dormia ainda. A trama dos pontos também não agradou, parecia comum feito escamas de um peixe barato.

O modelo nada tinha de especial, lembrava camisola, uma pala e o resto escorrido, com o compromisso original de cobrir o corpo, apenas. Fiz cara de que gostei, será que soube fazer? Então me pediram para vestir. Fui ao quarto de minha mãe e ainda tentei, com esforço infinito, manter com aquilo um pouco de cumplicidade. Afaguei, cheirei, alisei, encostei o rosto suavemente. Nada. Era como o braço de um estranho que roça o seu, no banco do ônibus. Só incômodo e estranheza.

Tive pena dela. Como voltar à sala tão vestida de dúvidas? Como as pessoas não veriam o desapontamento em meu olhar? Mas fui, solicitaram e fui. Atravessei a sala em silêncio e parei diante dela. Estava completamente infeliz dentro daquela coisa que me transformava em um canudo magrelo e insosso. E ainda pior! Denunciava meus peitinhos brotando irrequietos e incômodos, anunciando o fim da meninice. Aquilo era o fim!

Constrangida, decepcionada, morrendo de pena, fingi que gostava, tudo para não ferir aquela que havia tecido as horas de sua vida em um vestido que eu nunca mais vestiria.