terça-feira, maio 19, 2009

PROGRAMA DE ÍNDIOS (ou a outra lição de mestre Darcy)

Ideologia: ainda há quem queira alguma pra viver?

Ah, como foi ingênua nossa crença, por ela nos atiramos na miúda política do interior. Meu marido era professor, fora eleito vereador e, como aquilo não tinha porto, era candidato a deputado. Pulmões cheios de ar e cigarros para gritar por uma classe, por uma esperançazinha de tudo fazer diferente, para mais e para melhor, é claro.

Mas isso é assunto para outras longas e controvertidas conversas. Quem sabe um dia não faço história delas... Hoje gostaria de contar uma lição que essa curta passagem pela política – muito digna, muito honrosa, mas infeliz e decepcionante para ele – trouxe para mim, particularmente, que nem eu nem ele pudemos esquecer.

No agito de umas eleições recebíamos visitas ilustres. Eram candidatos perseguindo eleitores, procurando partidários mais comprometidos que não inflacionassem seus cobiçados votos, enfim, essas coisas que hoje todo mundo mais ou menos sabe. Não sabíamos, naquela época, mas fomos aprendendo as coisas por dentro.

Naquelas tardes e noites cheias de surpresas, uma foi especial. Soubemos longamente da visita dele, articulada por prestígios e poderes locais. Chegaria para a reunião das lideranças, o discurso e o comício. Seria oficialmente recebido pelo presidente do partido, que ofereceria um reservado jantar, com as pompas que lhe cabiam. Fomos também nós.

Confesso que sabia, em termos, de sua importância na cena intelectual do Brasil. Mas não avaliava bem o que seria ver de perto, ouvir os sons e reconhecer pelo tato de um beijo no rosto, aquela pessoa falante. Falante e fascinante! Sem mais delongas, estou falando de Darcy Ribeiro. Mas, qual Darcy, o intelectual, o político brizolista ou o indigenista?

A noite estava só começando e todos agitadíssimos disputavam a cadeira mais próxima da dele. Quem sabe um olhar mais demorado, uma aprovação, o ouvido dele para as vantagens e as balelas mais mirabolantes da politicagem local. Observava de longe, meio atônita e um tanto perdida... Fui me sentar diante da televisão na sala, para distrair.

Distraída estava quando invade a sala o séquito de ávidos correligionários: “Aonde vai, Professor?” Darcy à frente dizia: “Agora, vou assistir Pantanal. E vou me sentar ao lado desta bela mulher de botas longas”. A “bela mulher” – acredite, eu juro! – era eu. “Quando acabar a novela, retomamos a reunião”. Pode imaginar meu desconforto?

Ali estava eu, dividindo o sofá com uma das figuras mais respeitadas e brilhantes da intelectualidade brasileira daquele século, assistindo novela! Sofri vertigem, carecia urgentemente de frases e mensagens inteligentes... Ele devia perceber minha angústia. Tentava relaxar com aquelas conhecidas brincadeiras de que jamais morreria de pneumonia dupla. Enfim, quem precisava de assunto ao lado do professor Darcy?

Rapidamente ele assumiu o leme do barco, ou melhor, da chalana, e começou a falar da novela. Seus olhinhos sob as grossas sobrancelhas brilhavam com as deslumbrantes imagens do Pantanal. Ele falava de sua vida com os índios, da sua existência mágica. Sua alegria era contagiante e eu me vi rindo como numa conversa de comadres. Raposas e políticos se acotovelavam ao redor do sofá, ansiosos e impotentes...

Darcy queria ver novela e falar de suas aprendizagens e descobertas no convívio com os índios. No auge da ansiedade, enquanto na novela o marido descobria a traição da mulher, nosso líder partidário regional tentou, de maneira pouco feliz, é bem verdade, se mostrar nos seus princípios. Cheio de empáfia, arriscou o comentário: “Eu não traio! Nem meu partido, nem meu eleitor, nem minha mulher!”

Mestre Darcy, atropelando as palavras, como sempre, rapidamente retrucou: “Pois eu não traio minha vontade, minha verdade, nem meus instintos. Eu não traio a mim mesmo”. Um longo silêncio, incômodo e didático, tomou conta da sala. Professor Darcy acabara de ensinar mais uma lição! Foi assim que ele morreu, não traindo, sobretudo, o desmedido amor que tinha por si mesmo e por este imenso Brasil.

Ah, como aprendi sobre ideologias de viver, naquela longa noite. Obrigada, Mestre!