SERIA EU?
Encontrei Maria Vitória
durante uma caminhada pelas ruas do meu bairro. Vestia jeans, camiseta
vermelha, dois olhos vivos sobre olheiras profundas e uma lisa e negra
cabeleira que se agitava ao vento. Entregava panfletos numa esquina junto a
outros jovens, carregando bandeiras e adesivos de uma candidata à presidência
do país. Parei, puxei assunto e ela sorriu, falante, logo me convenceu a colar
um botton de sua candidata na blusa.
Engrenamos uma animada
conversa, parecíamos velhas amigas. Ela me contou, em palavras nada breves, que
era filha de um político, desses tradicionais, à moda antiga, mas um homem
honrado e trabalhador, prestativo por convicção, que morreu pobre e foi
enterrado sem pompa no cemiteriozinho do lugar. Tinha orgulho do seu passado, vereador
por vinte anos num tempo em que não havia salários, pequeno orgulho que ele
fazia questão de ostentar.
Além é claro, dos ternos, – ah,
os ternos! (e aí ela se empolgou!). – Como ele adorava os ternos! Não tinha
muitos nem eram caros, mas impecáveis e completos, bem passados e concluídos
por gravatas de laços rigorosos. Pagos em muitas parcelas módicas nas lojas quase
chiques da sede, como se dizia do primeiro distrito do município. Outra paixão
eram os carros, mas nunca os tivera muito caros – a vida andava difícil!
Enquanto falava do pai os
olhos brilhavam como uma negra noite de muitas estrelas pulsantes. Era jovem,
cheia de sonhos e, estranhamente, também de saudades. Perguntei mais sobre ele,
sobre suas posições e ideologias, suas escolhas políticas... – Ideologia? Sabe,
ele gostava mesmo é de ajudar, fazer favor sem esperar retorno (que o
reconhecimento naturalmente traduziria em votos). Tinha verdadeira obsessão por
resolver problemas.
– Trabalhara por longos anos
como motorista de uma velha raposa de direita, tipo reaça e conservador. Com
ele aprendera coisas questionáveis, é bem verdade, guardadas em silencioso
respeito, por mim e por ele. No fundo, no fundo, o mesmo sangue dele corria em
mim e me falava a verdade: queríamos que todos vivessem bem, que tivessem os
mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Mas ele aprendera um discurso verde,
de oliva, não de esperança, exatamente.
Os braços dela giravam inquietos
enquanto falava, os olhos arregalavam a cada emoção, senti alguma familiaridade
com aquilo. Nem precisou pedir para que prosseguisse... Certa vez, ele pedira
que ela votasse em um candidato seu, para federal. Movida pelo coração, não
teve coragem de negar, mas adiantou que votaria no Lula para presidente. Acordo
selado! Passada a votação, o velho cacique do local fora conferir o voto dela:
claro, riram juntos um da esperteza do outro...
Um certo senso de honestidade
os unia mais. Creio que se eu quisesse ela ficaria ali contando sua história por
muito mais tempo, de sua admiração e amor pelo pai, reacionário mas bom e humano,
que acordava na madrugada para levar mulheres parindo ao hospital, para comprar
o caixão que sepultaria uma velhinha sem recursos, trazido na mala do velho
aero-willis, com ela cheia de pavor, menina ainda, sentadinha no banco de trás.
Eu precisava seguir, ela talvez
precisasse de fôlego para continuar... Continuar o que, mesmo? Nos despedimos,
com a certeza de que nos veríamos em breve, tomara que na comemoração da
vitória de nossa candidata comum. La vai ela, lépida e cheia de esperança, com sua
cota de panfletos e saudade na mochila. Tive a certeza de que ela permaneceria
ali, contando sua história, talvez para sempre. Pensando bem, talvez ela ainda
esteja contando sua história por aí.
Ela dobrava a esquina quando
a vi pela última vez. Não sei porque, corri em sua direção, tentei alcançá-la,
mas foi em vão. Ela tinha se perdido na escuridão, mas dentro de mim, um
sentimento forte, uma dúvida inquietante, uma silenciosa e intermitente pergunta:
– Maria Vitória... seria eu?