quarta-feira, outubro 29, 2014

SERIA EU?

Encontrei Maria Vitória durante uma caminhada pelas ruas do meu bairro. Vestia jeans, camiseta vermelha, dois olhos vivos sobre olheiras profundas e uma lisa e negra cabeleira que se agitava ao vento. Entregava panfletos numa esquina junto a outros jovens, carregando bandeiras e adesivos de uma candidata à presidência do país. Parei, puxei assunto e ela sorriu, falante, logo me convenceu a colar um botton de sua candidata na blusa.
Engrenamos uma animada conversa, parecíamos velhas amigas. Ela me contou, em palavras nada breves, que era filha de um político, desses tradicionais, à moda antiga, mas um homem honrado e trabalhador, prestativo por convicção, que morreu pobre e foi enterrado sem pompa no cemiteriozinho do lugar. Tinha orgulho do seu passado, vereador por vinte anos num tempo em que não havia salários, pequeno orgulho que ele fazia questão de ostentar.
Além é claro, dos ternos, – ah, os ternos! (e aí ela se empolgou!). – Como ele adorava os ternos! Não tinha muitos nem eram caros, mas impecáveis e completos, bem passados e concluídos por gravatas de laços rigorosos. Pagos em muitas parcelas módicas nas lojas quase chiques da sede, como se dizia do primeiro distrito do município. Outra paixão eram os carros, mas nunca os tivera muito caros – a vida andava difícil!
Enquanto falava do pai os olhos brilhavam como uma negra noite de muitas estrelas pulsantes. Era jovem, cheia de sonhos e, estranhamente, também de saudades. Perguntei mais sobre ele, sobre suas posições e ideologias, suas escolhas políticas... – Ideologia? Sabe, ele gostava mesmo é de ajudar, fazer favor sem esperar retorno (que o reconhecimento naturalmente traduziria em votos). Tinha verdadeira obsessão por resolver problemas.
– Trabalhara por longos anos como motorista de uma velha raposa de direita, tipo reaça e conservador. Com ele aprendera coisas questionáveis, é bem verdade, guardadas em silencioso respeito, por mim e por ele. No fundo, no fundo, o mesmo sangue dele corria em mim e me falava a verdade: queríamos que todos vivessem bem, que tivessem os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Mas ele aprendera um discurso verde, de oliva, não de esperança, exatamente.
Os braços dela giravam inquietos enquanto falava, os olhos arregalavam a cada emoção, senti alguma familiaridade com aquilo. Nem precisou pedir para que prosseguisse... Certa vez, ele pedira que ela votasse em um candidato seu, para federal. Movida pelo coração, não teve coragem de negar, mas adiantou que votaria no Lula para presidente. Acordo selado! Passada a votação, o velho cacique do local fora conferir o voto dela: claro, riram juntos um da esperteza do outro...
Um certo senso de honestidade os unia mais. Creio que se eu quisesse ela ficaria ali contando sua história por muito mais tempo, de sua admiração e amor pelo pai, reacionário mas bom e humano, que acordava na madrugada para levar mulheres parindo ao hospital, para comprar o caixão que sepultaria uma velhinha sem recursos, trazido na mala do velho aero-willis, com ela cheia de pavor, menina ainda, sentadinha no banco de trás.
Eu precisava seguir, ela talvez precisasse de fôlego para continuar... Continuar o que, mesmo? Nos despedimos, com a certeza de que nos veríamos em breve, tomara que na comemoração da vitória de nossa candidata comum. La vai ela, lépida e cheia de esperança, com sua cota de panfletos e saudade na mochila. Tive a certeza de que ela permaneceria ali, contando sua história, talvez para sempre. Pensando bem, talvez ela ainda esteja contando sua história por aí.
Ela dobrava a esquina quando a vi pela última vez. Não sei porque, corri em sua direção, tentei alcançá-la, mas foi em vão. Ela tinha se perdido na escuridão, mas dentro de mim, um sentimento forte, uma dúvida inquietante, uma silenciosa e intermitente pergunta: – Maria Vitória... seria eu?