segunda-feira, setembro 28, 2015

ELA NÃO VAI VOLTAR

O cheiro é muito bom! Avança pelas narinas num looping de alucinar. Memória acionada, traz um bife na manteiga, as férias no Rio de Janeiro, o apartamento no andar muito alto, acima das nuvens. Era a casa dos patrões da minha tia. A pele ganhava uma camada extra de gordura, a alma se deixa provocar na valsa das lembranças.
Tinha eu meus onze, doze anos, e uma leveza de sonhos e descobertas. Fui parar naquela casa, cujos habitantes comiam bife na manteiga, onde coisas diferentes sempre aconteciam. Na nossa casa, distante dali, nunca faltou carne, quase sempre da criação que vovó mantinha no quintal: galinha, pato, porco, e quando nada, um ovo.
Às vezes um exótico jacaré, que o vizinho caçava e repartia com os amigos. Mas carne de vaca, mesmo, era coisa rara e muito cara. Na manteiga então! Comíamos em qualquer lugar. Naquela casa, não, comíamos na cozinha, eu e minha tia, silenciosas e solidárias. Era um desperdício não poder desbravar aquele belo e imenso apartamento.
Mas eu obedecia, quando os patrões estavam em casa, por respeito à minha tia. Quando eles saíam, aí sim, a curiosidade me levava pelos ambientes decorados e cheirosos. Era tudo muito refinado, tão diferente da minha casinha distante, do meu quarto simples, mas nem por isso menos limpo, tão diferente daquilo tudo. Eu gostava dos dois.
Na casa viviam um casal de meia idade e sua filha, que regulava idade comigo. A ideia inicial era que fossemos brincar, nas nossas férias. Mas algumas peculiaridades acentuavam o abismo entre nós. A menina era gorducha, quase obesa para a idade, mimada, acostumada a ver desejos realizados; eu talvez fosse menos má do que me sinto hoje.
Ela nada sabia da dureza da vida. Eu tinha um corpinho magro e pequeno, moldado nos recursos fitness da vida na roça: pique-bandeira, amarelinha, corda, árvores. Tornei-me o tormento da gordinha; que, por revanche, me tratava como uma boneca pobre e indesejada, que ela fazia questão de torcer, judiar, submeter ao martírio. 
Combinávamos de pentear os cabelos uma da outra: ela manipulava a escova com violência, espetando a cabeça e arrancando meus fios longos muito negros. Na minha ingenuidade, acho que eu sabia me livrar dela. Mais do que isso, creio que entendia as razões dela, sobretudo quando nos levavam para passear.
Íamos a algumas lojas bem chiques, caríssimas! Lá compraram muito, como se necessitassem preencher o vazio daquele grande corpinho de menina. Na época, a moda era estampa de estrelinhas, e muitas, infinitas estrelinhas desfilavam pelo céu dos meus olhos desejosos. Nada para mim, tudo para a menina, no maior número da loja.
Essa era a minha vingança! Quando, de outra vez, fomos à praia – Copacabana, sempre tão bacana! –, aquilo tudo me consumiu o crédito de carma: a vontade de rir só de vê-la socada num maiozinho desajeitado e feio, eu arrasando num biquíni desgastado e roto, cobrindo, porém, um corpo lépido, fagueiro e moreno.
Claro que a brincadeira preferida dela, naquele instante, foi tentar me afogar, saltando sobre meus ombros. Mas eu sempre escapulia e me salvava ao final. Alguma coisa me suga para dentro e fora das lembranças. Ah, sim, o bife sobre a mesa, os olhos úmidos. Outro dia, no cinema, me encontrei na tela. Sabia bem do que tratava o filme.
Aplaudi com força no final! Minha tia não está mais aqui, e eu sei que não adiantaria perguntar, afinal, que horas ela volta?