ELA NÃO VAI VOLTAR
O cheiro é muito bom! Avança pelas narinas num looping de
alucinar. Memória acionada, traz um bife na manteiga, as férias no Rio de
Janeiro, o apartamento no andar muito alto, acima das nuvens. Era a casa dos
patrões da minha tia. A pele ganhava uma camada extra de gordura, a alma se
deixa provocar na valsa das lembranças.
Tinha eu meus onze, doze anos, e uma leveza de sonhos e descobertas. Fui
parar naquela casa, cujos habitantes comiam bife na manteiga, onde coisas
diferentes sempre aconteciam. Na nossa casa, distante dali, nunca faltou carne,
quase sempre da criação que vovó mantinha no quintal: galinha, pato, porco, e
quando nada, um ovo.
Às vezes um exótico jacaré, que o vizinho caçava e repartia com os
amigos. Mas carne de vaca, mesmo, era coisa rara e muito cara. Na manteiga
então! Comíamos em qualquer lugar. Naquela casa, não, comíamos na cozinha, eu e
minha tia, silenciosas e solidárias. Era um desperdício não poder desbravar aquele
belo e imenso apartamento.
Mas eu obedecia, quando os patrões estavam em casa, por respeito à minha
tia. Quando eles saíam, aí sim, a curiosidade me levava pelos ambientes
decorados e cheirosos. Era tudo muito refinado, tão diferente da minha casinha
distante, do meu quarto simples, mas nem por isso menos limpo, tão diferente daquilo
tudo. Eu gostava dos dois.
Na casa viviam um casal de meia idade e sua filha, que regulava idade
comigo. A ideia inicial era que fossemos brincar, nas nossas férias. Mas
algumas peculiaridades acentuavam o abismo entre nós. A menina era gorducha,
quase obesa para a idade, mimada, acostumada a ver desejos realizados; eu
talvez fosse menos má do que me sinto hoje.
Ela nada sabia da dureza da vida. Eu tinha um corpinho magro e pequeno,
moldado nos recursos fitness da vida na roça: pique-bandeira, amarelinha,
corda, árvores. Tornei-me o tormento da gordinha; que, por revanche, me tratava
como uma boneca pobre e indesejada, que ela fazia questão de torcer, judiar,
submeter ao martírio.
Combinávamos de pentear os cabelos uma da outra: ela manipulava a escova
com violência, espetando a cabeça e arrancando meus fios longos muito negros.
Na minha ingenuidade, acho que eu sabia me livrar dela. Mais do que isso, creio
que entendia as razões dela, sobretudo quando nos levavam para passear.
Íamos a algumas lojas bem chiques, caríssimas! Lá compraram muito, como
se necessitassem preencher o vazio daquele grande corpinho de menina. Na época,
a moda era estampa de estrelinhas, e muitas, infinitas estrelinhas desfilavam
pelo céu dos meus olhos desejosos. Nada para mim, tudo para a menina, no maior
número da loja.
Essa era a minha vingança! Quando, de outra vez, fomos à praia –
Copacabana, sempre tão bacana! –, aquilo tudo me consumiu o crédito de carma: a
vontade de rir só de vê-la socada num maiozinho desajeitado e feio, eu
arrasando num biquíni desgastado e roto, cobrindo, porém, um corpo lépido,
fagueiro e moreno.
Claro que a brincadeira preferida dela, naquele instante, foi tentar me
afogar, saltando sobre meus ombros. Mas eu sempre escapulia e me salvava ao
final. Alguma coisa me suga para dentro e fora das lembranças. Ah, sim, o bife
sobre a mesa, os olhos úmidos. Outro dia, no cinema, me encontrei na tela.
Sabia bem do que tratava o filme.
Aplaudi com força no final!
Minha tia não está mais aqui, e eu sei que não adiantaria perguntar, afinal,
que horas ela volta?