segunda-feira, agosto 14, 2006

OLHOS DE HUSKY SIBERIANO


Suely era minha manicure preferida: lourinha, bonitinha, simpática e imbatível numa unha encravada! Com sotaque gaúcho preenchia minhas tardes de sexta, ou de terça, sei lá... Nunca tive dia certo de fazer unhas, como tantas mulheres.

Chegava querendo água morna, café (de preferência com biscoitinho) e papo, muito papo pra dar a liga. Adorava maçãs! Falava ela de um lado e falava eu de outro (que não gosto pouco de um bom papo também).

Lá pelas tantas eu cansava e ela continuava falando e escalavrando meus dedos. Eu me calava e fingia que ouvia as lamúrias dela. Às vezes ouvia sim, e morria de pena. Tinha uma sogra terrível, como quase todo mundo tem (menos eu). Tinha um marido preguiçoso e mulherengo, como quase todo mundo tem (menos eu). Tinha um monte de coisa curiosa, mas a mais interessante era um par de olhos um azul e outro verde, como quase ninguém tem (menos ela). E isso, cá pra nós, era mesmo motivo de orgulho!

Foram muitas as tardes e manhãs que compartilhamos – Suely e eu – as angústias dessa vida. Sempre tive a sensação de que as dela eram maiores que as minhas. Às vezes eu lhe fazia alguns agrados, dava umas voltas com ela no meu carrão, levava ela pro trabalho fixo em um salão. Outras vezes, meio sem jeito pra não humilhar, eu lhe oferecia uma roupa que já não me agradava ou um sapato que não cabia nela (mas ela levava assim mesmo, pra não me desagradar).

Ela queria voltar pro Sul, mas faltava alguma coisa na bagagem. Eu queria que ela fosse, como uma cigana que lia a mão dela enquanto ela fazia a minha. Eu insistia que ela precisava voltar. Quis ajudar, mas ela era reticente... Até que um dia o que faltava finalmente se anunciou: Suely apareceu grávida. Grávida daquele marido sem eira nem beira e – pior! – grávida também daquela sogra inescrupulosa e daquele destino sem futuro que ela veio buscar no Sudeste.

Aí ela não agüentou o tranco. Um dia, sem mais nem menos, largou minha unha por fazer e foi-se embora sem dizer meia palavra. Logo ela que tinha tantas...

Fiquei entre desapontada e feliz porque sempre quis que, de alguma forma, ela se fosse. Passaram-se alguns anos, arrumei outras manicuras, mas nunca me esqueci dela. Soube que tivera uma filha e se mandara sem nada dizer ao marido. Ele na pasmaceira estava, na pasmaceira permaneceu. Duas mulheres pra cuidar seria demais: – “Não vou atrás!” – disse.

Até que hoje, não sei porque hoje, voltei a ter notícias de Suely. Lembra – querida leitora – quando disse que seu orgulho era anunciar uns olhos estranhamente coloridos e desiguais? Pois é, Suely está cega de um deles. O que parecia inusitado era, de fato, uma doença progressiva que lhe levou a visão. Não sei se agora ela vê o mundo pelo olho azul (da fé) ou pelo verde (de esperança).

Só sei que enquanto escrevo esta crônica choro por ela, Suely dos Olhos de Husky Siberiano, com a simplicidade dos meus dois imensos olhos negros e úmidos de ternura.

Águas de março de 2006

10 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Você escreve muito bem!
Que cronica gostosa, linda e ao mesmo tempo triste!
Incrivel como você conseguiu transformar em interessante algo tão banal quanto conversas em fim de tarde com uma manicure!

Continue escrevendo, você é maravilhosa!

Beijos, SOU SEU FÂ :D

1:41 PM  
Blogger [m_] said...

uauuuuuuuu!!!

Cleir, você é mesmo surpreendente, viu?
coisa boa te ler!!!

amei, amei, amei!!!

escreva muito e sempre. Virei mais fã ainda!!!

beijo!!!!!!!!
margarida*

12:32 PM  
Anonymous Anônimo said...

Simpática,super gente boa e ainda por cima escreve bem,que mais que eu posso querer gente?!?!
huahahhhuahuhua =)

Cada dia eu fico mais feliz por ter ti conhecido viu ??

Adorei o blog!Como já tinha dito,você tá muito chic! x)

Beijo!

5:33 PM  
Blogger Luciana Pessanha said...

Um fio de prosa com boa densidade. Gostei.
Parabéns pelo blog.
beijo

9:13 PM  
Anonymous Anônimo said...

rebecca
Cleir..mt lindo o seu texto..amei...

9:33 AM  
Blogger [m_] said...

Cleir!!!!!!!!
Cadê você???

To aqui querendo [te] ler mais!!!
;)

Beijos!!!!!!!!!!

1:35 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito bom!!! Parabéns!

5:27 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito boas as crônicas. Parabéns!
Seu cunhado, zé.

5:31 PM  
Anonymous Anônimo said...

Há pouco me disseram algo como "nossos ombros são as partes mais importantes de nosso corpo, pq acolhem e amparam dores alheias". E não apenas dores, sei... Mas, lendo vc, agora, percebo que algumas pessoas têm mais que os ombros (que todos temos) para esse amparo; têm palavras. Creio que a Suely sentiria-se amparada e acolhida se pudesse lê-la agora.
Bj

5:52 AM  
Anonymous Anônimo said...

Minha linda! Como posso dizer...Obrigada? Sim, pela maravilha desta crônica: "Olhos de ..." Linda! Foi um deleite. Amo crônicas e poesias. Elas, quando boas, quando eclodem d'alma dos poetas e escritores afortunados, fazem-nos sentir mais leves, mais puros, mais anjos, mais perto de Deus. Um grande beijo.

6:47 AM  

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