sábado, maio 28, 2016

MEU ENCONTRO COM SARAMAGO

Lá estava o livro sobre a bancada do armário, no lugar onde todas as noites apanho a leitura corrente, aquela que estou fazendo para atenuar as durezas do dia-a-dia. Sugeriu-me discretamente que vencesse a resistência, empreendendo a leitura do Saramago.
Não que, por qualquer motivo, eu não gostasse do autor, mas achava um texto intrincado demais, difícil de atravessar, quase um labirinto ou um quebra-cabeças de palavras, que precisava de concentração e vigília constantes para encontrar a saída, isto é, o sentido. Como não tenho tido nem uma nem outra coisa tão facilmente (a cabeça sempre perdida em misteriosas esferas cotidianas), vinha adiando o encontro com o escritor português.
Nessa noite, o livro nas mãos como única opção, decidi ceder. Fui rodeando o objeto físico e prevendo o encontro, apalpando e sentindo a textura do papel, cheirando e ganhando intimidade. Comecei pelo título, a capa, o prefácio, a dedicatória, a orelha e o posfácio. De repente, deparo comigo já no final da primeira página! Lá estava eu, vertiginosa e segura, mergulhando n’As Pequenas Memórias do menino que precedeu o escritor.
Logo de saída entendi e gostei do recado na epígrafe: "Deixa-te levar pela criança que foste" (O Livro Dos Conselhos). Foram páginas e páginas de encantamento e poesia. Algumas paradas para deixar a inundação na lagoa dos olhos escoar e retomar o foco. Muitas lembranças e uma vontade enorme de falar eu mesma das minhas escondidas, tão pequenas e fugidias memórias. Da criança que, quase como se estivesse em uma outra vida, eu mesma fui algum dia.
Decerto, Saramago aguçou minhas lembranças e meus sentidos. Relâmpagos fugiam do esquecimento, cruzando o céu carregado de meu passado.
Gostaria que quando fosse cair todo esse temporal, que caísse daquela forma singela e franca, como faz o autor. Pode ser qualquer dia desses, histórias que falem das duas classes que dividem o mundo – os velhos e as crianças –, da mãe de uma garotinha morena sob uma jaqueira enorme, protegendo e ameaçando o ponto do ônibus, de uma noite escura e um saci inusitado, narrativas que se recomponham dentro de mim, e abram caminho, e busquem rumo.
Duvidosa, sempre, de qualquer exatidão, já que a memória, como nos mostra Saramago, é sempre imprecisa e esquiva.  "Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido ator inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados..." – diz o escritor.

Duvidosa, sim, imprecisa e esquiva, mas minha.