MEU ENCONTRO COM SARAMAGO
Lá estava o livro sobre a bancada do armário, no
lugar onde todas as noites apanho a leitura corrente, aquela que estou fazendo
para atenuar as durezas do dia-a-dia. Sugeriu-me discretamente que vencesse a
resistência, empreendendo a leitura do Saramago.
Não que, por qualquer motivo, eu não gostasse do
autor, mas achava um texto intrincado demais, difícil de atravessar, quase um
labirinto ou um quebra-cabeças de palavras, que precisava de concentração e
vigília constantes para encontrar a saída, isto é, o sentido. Como não tenho
tido nem uma nem outra coisa tão facilmente (a cabeça sempre perdida em
misteriosas esferas cotidianas), vinha adiando o encontro com o escritor
português.
Nessa noite, o livro nas mãos como única opção, decidi
ceder. Fui rodeando o objeto físico e prevendo o encontro, apalpando e sentindo
a textura do papel, cheirando e ganhando intimidade. Comecei pelo título, a capa,
o prefácio, a dedicatória, a orelha e o posfácio. De repente, deparo comigo já
no final da primeira página! Lá estava eu, vertiginosa e segura, mergulhando n’As
Pequenas Memórias do menino que precedeu o escritor.
Logo de saída entendi e gostei do recado na
epígrafe: "Deixa-te levar pela criança que foste" (O Livro Dos
Conselhos). Foram páginas e páginas de encantamento e poesia. Algumas paradas
para deixar a inundação na lagoa dos olhos escoar e retomar o foco. Muitas
lembranças e uma vontade enorme de falar eu mesma das minhas escondidas, tão
pequenas e fugidias memórias. Da criança que, quase como se estivesse em uma
outra vida, eu mesma fui algum dia.
Decerto, Saramago aguçou minhas lembranças e meus
sentidos. Relâmpagos fugiam do esquecimento, cruzando o céu carregado de meu
passado.
Gostaria que quando fosse cair todo esse temporal, que
caísse daquela forma singela e franca, como faz o autor. Pode ser qualquer dia
desses, histórias que falem das duas classes que dividem o mundo – os velhos e
as crianças –, da mãe de uma garotinha morena sob uma jaqueira enorme,
protegendo e ameaçando o ponto do ônibus, de uma noite escura e um saci
inusitado, narrativas que se recomponham dentro de mim, e abram caminho, e
busquem rumo.
Duvidosa, sempre, de qualquer exatidão, já que a
memória, como nos mostra Saramago, é sempre imprecisa e esquiva. "Às
vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais
do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido ator inconsciente
e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados..."
– diz o escritor.
Duvidosa, sim, imprecisa e esquiva, mas minha.
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