quinta-feira, agosto 14, 2008

AS PERNAS DA MENTIRA

Era sempre no finzinho de tarde que eles chegavam, quando o café borbulhava no grande coador de flanela, precipitando-se pela boca do bule de alumínio. Pronto o café, um bico de galo arrematado em crochê evitava as moscas, enfeitava e perfumava tudo bem ali, em cima do fogão à lenha.

De banho tomado, nos acomodávamos empoleirados em braços de cadeiras e banquinhos, agachados ou mesmo despossuídos pelo chão. Eles apontavam lá no terreiro, entre a casa e a jaqueira que brotava imensa, com suas raízes alongando-se como serpentes, ameaçando engolir os visitantes.

Chegavam calmamente. Pareciam nobres pelos trajes pouco comuns ao nosso gosto e costume. Ele sempre de chapéu, uma bengala imponente nas mãos, bigode grosso e grisalho. Ouvíamos a voz forte que mais impunha do que desejava, repetidamente, um “boa noite, boa noite!”, desde longe.

Ela era doçura de pela clara, cabelos lisos sempre presos, cuidadosamente retorcidos num coque elegante que lhe caía muito bem. Usava camafeu e brincos de marcassita. Vestia-se com sóbria elegância e falava baixo, serenamente. Tinha olhos vivos como os de uma menina que o tempo perdera de conta, mas não de vista...

Naquela época, eu não conhecia ainda Monteiro Lobato. Intuía que eles eram pessoas dos livros, de imagem, fala e perfume. Percebo agora que eles saíram de um conto, do Sítio mais acertadamente.

Chegavam, finalmente! E se instalavam nas melhores cadeiras, eram visitas afinal! Então começava uma longa conversa, ou melhor, um longo monólogo que ninguém atrevia contrastar. Seu Arnaldo falava de um modo de assustar, em ambas as possibilidades de significado que essa palavra tem.

Tinha preferência pelas histórias de terror. Era um caçador, daqueles que guardam na sala a cabeça empalhada dos animais abatidos, estranhos troféus, sei lá, meio patéticos, nunca entendi direito... Tinha início, então, a mentirosa sessão de narrativas, pura irrealidade que divertia, tornando menos dura a realidade insuperável daquela Macondo.

Seu Arnaldo e Dona Cecília (um nome que vibrava entre coisas, porcelana, prata e azul), Seu Arnaldo e Dona Cecília eram amigos dos meus avós. Sempre bem vindos à casa humilde na entrada da Vila, mesmo que duvidássemos da carne e do osso de que eram feitos ou do fantástico e hiperbólico discurso daquele homem incomum.

Sempre que saíam, quando a tarde já varava a noite alucinada de Itambi, permaneciam alguns dos nossos pela sala, rindo aqui, comentando ali, ponderando uma a uma todas aquelas improbabilidades. Estava decidido: Seu Arnaldo era personagem de um livro. Mas as crianças (tão crédulas!) ficavam marcadas para sempre sob o misturado impacto do medo e da fantasia que tudo aquilo inspirava.

Numa noite dessas, ele contou a história, densa e teatral como sempre, de uma caçada com seu desfecho alucinante. Bem caminhava por aqueles matos quando o choro estridente, embora remoto, de uma criança fez com que se apartasse dos companheiros. Perdeu-se na busca do choro, antevendo a criança que, em desespero, chorava. Um lindo bebê apareceu ali, estranhamente limpo, metido entre as raízes da grande árvore.

Imediatamente abaixou-se e pegou a pobre criancinha, frágil e aflita, talvez faminta. Foi quando o bebê se transformou numa criatura diabólica que fedia e urrava, expelindo fogo pelos olhos! Afastou-a de si benzendo-se com o sinal da cruz. Numa grande explosão, a coisa desfez-se em fumaça, inundando tudo com o cheiro sufocante do enxofre.

Silêncio na sala. Ninguém respirava, sequer. Cada qual decidia intimamente para si o maravilhoso dilema que dispunha em dois o crer e o desdenhar: o crer para acrescentar ao que já se sabia da vida e o desdenhar para sempre esquecer. Não se falou mais nada, até que eles fossem embora naquela noite.

Muito pouco se falou também depois. Não tinha consolidado ainda a língua que exprimia sentimentos tão confusos. Meus tios procuravam rapidamente seus aposentos, cobriam-se dos pés à cabeça e dormiam um sono denso, cheio de suspeitas. Os primos andavam uns empencados nos outros, siameses de olhos esbugalhados, procurando conforto.

Eu tratei logo de procurar o meio da cama entre papai e mamãe. Aprendia em lições esse segredo maior de todos os órfãos: pode haver no mundo melhor lugar para esconder-se de nossos medos? A casa foi ficando silenciosa. A voz do Seu Arnaldo resiste ainda nas paredes ocas de barro batido.

Verdade ou mentira? Não sei dizer, mas daquela noite em diante, algumas luzes nunca mais se apagaram na nossa casa e na Vila, dentro de mim.

6 Comments:

Blogger Bia said...

Ótimo!
Realmente, ele parece personagem de livro!

12:14 PM  
Blogger Unknown said...

Obrigago irmã por mais mais essa leitura. Essa é a minha irmã CLEIR. beijos.

9:19 AM  
Blogger Unknown said...

Obrigago irmã por mais mais essa leitura. Essa é a minha irmã CLEIR. beijos.

9:19 AM  
Blogger [m_] said...

Ah... os medos que nos fazem acender luzes...

Que bom te ler, Cleir!!

Beijos!!

2:48 PM  
Blogger gaveta said...

Ai que meh-do! Meio arrepiante!

1:26 PM  
Anonymous Anônimo said...

gostei muito do conto... sou mineira do interior; por acaso seria a narradora mineira também?

10:05 AM  

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