sábado, agosto 19, 2006

LEVA LEANDRA DAQUI

Não me lembro ao certo quantos anos eu tinha quando minha mãe me arrumou uma irmã adotiva. Claro que o propósito – ah, como eu conhecia minha mãe! – era me provocar.

Não sei quem tinha mais ciúmes de quem: eu vivia a reclamar que ela não me dava atenção; ela insistia em me cobrar que eu merecesse menos o carinho de papai... Até que um dia veio morar num casebre abandonado à beira do brejo, lá nos fundos de nossa casa, uma família muito pobre, cheia de filhos e de tristeza.

Minha mãe pronta e solidariamente se apresentou e fez-se amiga de todos. Envolveu-se de corpo e alma (como era seu costume), até tomar-se de amores por uma garotinha que regulava idade comigo. Claro: esse amor só podia ser uma provocação! Cuidava dela com tal zelo e carinho que eu me dilacerava de inveja.

Chamava-se – lembro-me bem! – Leandra. Era, de fato, linda! Não sei se mais do que eu, mas para mim bastava que tivesse a petulância de competir pelo amor de minha mãe. Tinha que ser mais bonita do que eu para que tudo se justificasse...

Cuidei dela de longe, porque não tinha suficiente coragem de ser má. Embora meu coraçãozinho se contorcesse de inveja daqueles olhinhos amendoados e dos cabelos mais claros que os meus, emprestei minhas poucas bonecas e dividi meu minúsculo quarto. Mas aguardava silenciosamente que ela se fosse.

Não que eu quisesse vê-la de novo naquele casebre. Entendia que ela também merecia um destino melhor. Mas, afinal, aquele lírio do brejo roubava meu sossego, invadia minha vida e conquistava sorrateiramente a mãe. Quando à noite me ajoelhava, rezando pro meu Anjo da Guarda, cheia de culpa eu pedia: “Leva Leandra daqui”. Não podia imaginar que fosse atendida tão depressa!

Um dia, não sei explicar porque, a menina quis voltar. Então chorou. Quis ir embora. Minha mãe não entendeu como ela podia recusar tanto carinho, banho quente, roupa bonita, boa comida e uma irmã... Bem, uma irmã generosa.

Ainda hoje me pergunto onde andará Leandra! Leandra, a que não me quis por irmã, nem quis minha mãe como mãe. Quis somente o destino dela, sem boneca, sem banheiro, sem roupa limpa. Mas um destino só dela.

Gostaria também de entender por que chegamos justamente ao que chegamos, como se tudo não passasse de um plano. Ando agora pedindo ao meu Anjo da Guarda que a encontre – numa beira de rio, num casebre qualquer, quem sabe no palácio do Príncipe que veio finalmente tirá-la da linha incerta do meu próprio destino...

Águas de março de 2006

4 Comments:

Blogger [m_] said...

*sem palavras*
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emoção pura.
obrigada por compartilhar conosco essa beleza toda.

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beijo!!

4:42 AM  
Blogger [m_] said...

Cleir

Li uma vez que a palavra nasce do silêncio...

Acho que é um dom saber escolher as palavras certas pra dizer coisas, pra contar coisas.

Tento, há muito tempo, me contar em palavras. Mas sou péssima. Ocupo poucas linhas, me conto em poucas palavras, digamos assim.

Estou tentando, pela quarta vez, escrever um blog. O primeiro foi em 2002. Durou quase dois anos e um belo dia resolvi apagar tudo. Coisa doida, né?

:)

Há alguns meses estou nesse endereço aqui [é quase segredo]

http://emdesordem.blogspot.com

É meu canto de deixar pensamentos e emoções - quase sempre em desordem...

beijo e obrigada por suas palavras, viu?

:**

5:51 PM  
Anonymous Anônimo said...

Olá!
Fiquei com inveja e revitalizei meu blog... vamos ver se consigo levar em frente.
Talvez a Leandra tenha sido feliz... não necessariamente com um príncipe, já que nem príncipes conseguem apagar a poesia do brejo, mas uma felicidade diferente da irmã dela, seguindo seu destino.
Adorei!
Voltarei sempre.

12:12 PM  
Anonymous Anônimo said...

Que belo texto, Cleir! Quanto desassossego em palavras tão serenas... Gostei demais! Abraço

2:52 PM  

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