OH, QUERIDA, RELEMBRE
Aquela era uma noite muito fria de junho ou julho,
quase uma redundância dizer isso no pé da serra. No céu, uma lua enorme e muito
clara esperava ansiosa o primeiro astronauta lhe tocar, embora com os pés, a
face imaculada. Tão ansiosa como a lua em sua expectativa, lá estava eu, menina
na inocência dos dez aninhos. Me pus a caminho para realizar um sonho: ver de
perto, se possível tocar com a ponta dos dedos, o grande ídolo da época, Jerry
Adriani.
Enquanto o Aero Willys marinho de papai deslizava pelas
curvas escuras, rumo a Cachoeiras de Macacu, eu olhava pelo vidro traseiro a
estrada turva, o luar no céu azul: creio ter visto a sombra de um homem e sua
pegada na lua. Eu tinha medo de que o mundo fosse acabar, na Itambi daquele
tempo corriam histórias do fim-do-mundo! Se fosse o fim, que eu tivesse ao
menos direito a um último desejo: ouvir, ao vivo, a voz que embalava os sonhos
da menina.
Tinha vestido minha roupa mais bonita, de pouquíssimo
uso: um vestidinho de veludo cotelê, em tons de alaranjado seco e feitio de
casaco, com abotoamento traspassado, fechando em oito lindos e delicados botões
de massa e metal. Usava uma meia calça rendada branca e sapatos de verniz
pretos brilhantes, modelo boneca. Eu mesma, uma boneca viva, arfante e
genuinamente feliz como só as crianças conseguem ser. Toda aquecida em
roupa e sonho.
Chegamos, enfim! Muita gente fechava a entrada do
clube. Papai, mamãe, providenciavam com seus corpos adultos a passagem em
segurança para a menininha. Aos empurrões, encontramos um lugar o mais próximo
possível do palco. Quando o show começou, fiquei entorpecida! Não acreditava em
tudo que via. Ali, pertinho de mim, Jerry embala meu torpor. Papai, sempre tão atento,
me colocou no palco, junto com outras crianças que dançavam.
Uma gentileza de artista, me recebeu e me abraçou.
Não me lembro se consegui dançar, quanto tempo fiquei por ali, o que disse e o
que ouvi. A memória só agora foi despertada e percebo que as menores emoções
são inesquecíveis. Sim, agora Jerry se foi, aos setenta anos. Em seus últimos
suspiros, certamente não haveria de estar a lembrança da menininha de cotelê laranja, olhos de jabuticabas e longos cabelos pretos, que lembra dele agora,
emocionada.
Porque a memória consagra a vida, em seus direitos
de lembrança.
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