sábado, abril 29, 2017

OH, QUERIDA, RELEMBRE

Aquela era uma noite muito fria de junho ou julho, quase uma redundância dizer isso no pé da serra. No céu, uma lua enorme e muito clara esperava ansiosa o primeiro astronauta lhe tocar, embora com os pés, a face imaculada. Tão ansiosa como a lua em sua expectativa, lá estava eu, menina na inocência dos dez aninhos. Me pus a caminho para realizar um sonho: ver de perto, se possível tocar com a ponta dos dedos, o grande ídolo da época, Jerry Adriani.
Enquanto o Aero Willys marinho de papai deslizava pelas curvas escuras, rumo a Cachoeiras de Macacu, eu olhava pelo vidro traseiro a estrada turva, o luar no céu azul: creio ter visto a sombra de um homem e sua pegada na lua. Eu tinha medo de que o mundo fosse acabar, na Itambi daquele tempo corriam histórias do fim-do-mundo! Se fosse o fim, que eu tivesse ao menos direito a um último desejo: ouvir, ao vivo, a voz que embalava os sonhos da menina.
Tinha vestido minha roupa mais bonita, de pouquíssimo uso: um vestidinho de veludo cotelê, em tons de alaranjado seco e feitio de casaco, com abotoamento traspassado, fechando em oito lindos e delicados botões de massa e metal. Usava uma meia calça rendada branca e sapatos de verniz pretos brilhantes, modelo boneca. Eu mesma, uma boneca viva, arfante e genuinamente feliz como só as crianças conseguem ser. Toda aquecida em roupa e sonho.
Chegamos, enfim! Muita gente fechava a entrada do clube. Papai, mamãe, providenciavam com seus corpos adultos a passagem em segurança para a menininha. Aos empurrões, encontramos um lugar o mais próximo possível do palco. Quando o show começou, fiquei entorpecida! Não acreditava em tudo que via. Ali, pertinho de mim, Jerry embala meu torpor. Papai, sempre tão atento, me colocou no palco, junto com outras crianças que dançavam.
Uma gentileza de artista, me recebeu e me abraçou. Não me lembro se consegui dançar, quanto tempo fiquei por ali, o que disse e o que ouvi. A memória só agora foi despertada e percebo que as menores emoções são inesquecíveis. Sim, agora Jerry se foi, aos setenta anos. Em seus últimos suspiros, certamente não haveria de estar a lembrança da menininha de cotelê laranja, olhos de jabuticabas e longos cabelos pretos, que lembra dele agora, emocionada.
Porque a memória consagra a vida, em seus direitos de lembrança.