quarta-feira, setembro 06, 2006

DONA CHI-CA-CÁ...

Dona Chica: pronuncio o nome dela e sinto a fumaça espessa do seu cigarro me invadindo a mente. Volto subitamente no tempo e redescubro os cantos sombrios e úmidos da casinha, cheia de gatos dissimulados e plantas estranhas – feito romã! As romãs me fascinavam, mas dos gatos eu tinha implicância e medo...

No fundo, eu adorava aquela casa, menos pelo requinte e beleza (que eram quase nenhuns) e mais pelo mistério e encantamento que me despertava. Me deixa contar bem detalhadamente, como é do meu jeito.

Dona Chica era costureira e das boas! Esquálida, temperamental, sistemática! Brava e tinhosa com quase todo mundo, mas comigo era um doce de Chica. Eu desenhava meus vestidinhos e dizia a ela como eu queria: ela me olhava, olhava e, por fim, retrucava – “Menina danada, não é que isso vai ficar bonito mesmo!”.

E fazia tudo mi-nu-ci-o-sa-men-te... como eu queria. Ficava uma formosura e ela lambia a cria, baforejando palavras misturadas em orgulho e nicotina.

Dona Chica era casada com Seu Nilo, um marido escorregadio e preguiçoso. Aquilo era uma geringonça na vida dela. Mais uma geringonça entre coisas naquele imenso quintal. Só servia – e quando muito! – pra fazer café e servir na canequinha verde de ágata, que ela bebia enquanto costurava e fumava...

Muitas vezes eu fui até lá com minha mãe. As duas eram muito amigas. Enquanto falavam, eu brincava com uma miniatura de caixa com garrafinhas de coca-cola. Era um brinquedo maravilhoso! Acho que nunca tive nada tão lindo! Eu tirava e botava aquelas garrafinhas na caixa mais de mil vezes!

Não entendia como ela, logo ela que não tinha criança em casa, podia ter um brinquedo tão fascinante! Aliás, tinha uma criança sim, mas era já um rapazola que parecia feito de papelão na chuva: apagado, umedecido e meio triste. Suponho que puxara o pai.

São muitas as lembranças daquela casa, daquela família e, ainda mais, daquela senhora sempre velha. (Acho que ser Dona Chica era ser um estado, sem tempo, sem passado, uma espécie de velhice permanente.) Tão fantástico, que tudo parecia saído de um livro.

Se não era, então fica sendo – Dona Chica, com sua estampa singular, com suas romãs cor-de-rosa, com a caravela no quadro pendurado sobre a cama, com a casa de pau-a-pique plantada quase como um cenário numa nesga de quintal, com a máquina encantada de fada-madrinha, transformando meus sonhos de menina em roupinha de princesa –, enfim, Dona Chica, minha doce Dona Benta, entronizada para sempre no livro da minha vida.
Ou, nesse meu presente nublado pela fumaça de seus infinitos cigarros, personagem deste meu pequeno livro de histórias, a Dona Chica, costureira das boas, ficará para sempre me ensinando a costurar lembranças e vesti-las na memória.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

"Menina danada! Não é que isso ficou bom mesmo..." Que coisa boa!

10:08 PM  
Blogger [m_] said...

Ah, eu já estava sentindo falta de ler você!!!!!!!!!!!!!!!

Delícia de texto, Cleir!!
To amando vir aqui!!

Beijo de bom feriado procê!
:**

3:39 AM  
Anonymous Anônimo said...

Menina danada e observadora, com esse olhar infinito, de uma memória viva, de um tempo bonito, com imagens, cheiros e sons muito vivos... essas casas encantadas serão sempre nossas casas, onde sempre moraremos.
Atualize sempre!

9:17 AM  
Anonymous Anônimo said...

Poesia singela, aconchegante, acariciadora... um passeio, ora por colinas frescas, ora por labirínticas trilhas da alma. Gostei muito!

4:39 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ana***
Muito bom. Li e já imaginei um livro. Pode? Adorei.

1:28 PM  

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