O POÇO
Houve um tempo em que toda casa de roça que se prezava
tinha um poço. Na minha rua tinha a nossa casa e o nosso poço, ele era o
tormento da minha mãe. Sempre à beira de um ataque de nervos, espiando o mundo
com as lentes da tragédia (ah, como eu me reconheço!), mamãe esperava o dia em
que uma criança cairia no poço. Sim, ela tinha certeza de que mais cedo ou mais
tarde uma de nós (e éramos muitas!) acabaria mergulhando no largo pescoço
daquele poço sem fundo. Meu avô por precaução havia colocado uma tampa de
madeira pesada, mas quem dizia que os usuários cuidavam de fechar? Por ela, o
poço deveria ser abandonado, lacrado ou aterrado para sempre, escondendo na
escuridão de seu remanso o lodo e as criaturas que brotavam da terra úmida,
mudas sereias telúricas com seus cantos abafados.
Mas o poço tinha suas
utilidades, quase mil e uma, desde molhar as plantas e regar a horta até lavar
a roupa e as louças e banhar os animais. Sem falar na função estratégica de
umedecer o terreiro antes da vassoura, pelo bem dos narizes que trocavam a
poeira pelo cheiro bom de terra molhada. Dele também saíam as rãs que minha tia
pescava na caçamba de lata improvisada na ponta do bambu, com as quais minha
avó preparava deliciosas e suculentas canjas. Eu comia aterrorizada pelas gargalhadas
do primo, que dizia serem de sapo aquelas perninhas magras que boiavam no
arroz. A água de beber vinha de longe, não dali: íamos buscar em vasilhas
próprias, grandes latas apoiadas na cabeça, protegida por rodilhas de pano para
não machucar o coco, lá na bica comunitária no centro da Vila. Enchíamos as
talhas, os filtros e os latões de cozinhar.
O poço tinha lá seus usos e
defensores, por isso se manteve firme ao longo dos anos. Até que um dia a
profecia de minha mãe se realizou, ou quase. Pelo menos naquela doce e
assustada cabeça louca, repleta de medos e monstros e sacis e florestas
assombradas. Muito menina e tímida, passei miúda e silenciosa por detrás dela,
que na pia lavava louças, sem que ela visse. Quando precisou de mais água e foi
ao poço, encontrou a tampa aberta e um ligeiro brilho d’água tremelicando lá no
fundo, como se algo tivesse caído. Já entorpecida pelo pavor, chamou meu nome
“Cleir, Cleir”, e eu distraída não ouvi. Gritou muito, gritou alto e forte,
repetidas vezes, em prantos, seus irmãos fizeram um esforço enorme para
impedi-la de saltar em meu socorro. Cordas iam sendo amarradas ao corpo do tio
mais leve para resgatar o pobre corpinho da sobrinha que a essa altura se
julgava afogada, morta irremediavelmente.
Fui me aproximando daquela confusão
sem entender nada quando que ela me viu. Atordoada, ela não sabia se me
abraçava ou se batia, se mordia os próprios braços ou se beijava meu rosto com
aqueles beijos salgados de alegria e desespero. Há muito ela se foi, levando
consigo esses momentos que o tempo já não reproduz, retirados de vez em quando
desse poço imenso chamado memória.
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