quarta-feira, junho 13, 2018

O POÇO


Houve um tempo em que toda casa de roça que se prezava tinha um poço. Na minha rua tinha a nossa casa e o nosso poço, ele era o tormento da minha mãe. Sempre à beira de um ataque de nervos, espiando o mundo com as lentes da tragédia (ah, como eu me reconheço!), mamãe esperava o dia em que uma criança cairia no poço. Sim, ela tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde uma de nós (e éramos muitas!) acabaria mergulhando no largo pescoço daquele poço sem fundo. Meu avô por precaução havia colocado uma tampa de madeira pesada, mas quem dizia que os usuários cuidavam de fechar? Por ela, o poço deveria ser abandonado, lacrado ou aterrado para sempre, escondendo na escuridão de seu remanso o lodo e as criaturas que brotavam da terra úmida, mudas sereias telúricas com seus cantos abafados. 

Mas o poço tinha suas utilidades, quase mil e uma, desde molhar as plantas e regar a horta até lavar a roupa e as louças e banhar os animais. Sem falar na função estratégica de umedecer o terreiro antes da vassoura, pelo bem dos narizes que trocavam a poeira pelo cheiro bom de terra molhada. Dele também saíam as rãs que minha tia pescava na caçamba de lata improvisada na ponta do bambu, com as quais minha avó preparava deliciosas e suculentas canjas. Eu comia aterrorizada pelas gargalhadas do primo, que dizia serem de sapo aquelas perninhas magras que boiavam no arroz. A água de beber vinha de longe, não dali: íamos buscar em vasilhas próprias, grandes latas apoiadas na cabeça, protegida por rodilhas de pano para não machucar o coco, lá na bica comunitária no centro da Vila. Enchíamos as talhas, os filtros e os latões de cozinhar. 

O poço tinha lá seus usos e defensores, por isso se manteve firme ao longo dos anos. Até que um dia a profecia de minha mãe se realizou, ou quase. Pelo menos naquela doce e assustada cabeça louca, repleta de medos e monstros e sacis e florestas assombradas. Muito menina e tímida, passei miúda e silenciosa por detrás dela, que na pia lavava louças, sem que ela visse. Quando precisou de mais água e foi ao poço, encontrou a tampa aberta e um ligeiro brilho d’água tremelicando lá no fundo, como se algo tivesse caído. Já entorpecida pelo pavor, chamou meu nome “Cleir, Cleir”, e eu distraída não ouvi. Gritou muito, gritou alto e forte, repetidas vezes, em prantos, seus irmãos fizeram um esforço enorme para impedi-la de saltar em meu socorro. Cordas iam sendo amarradas ao corpo do tio mais leve para resgatar o pobre corpinho da sobrinha que a essa altura se julgava afogada, morta irremediavelmente. 

Fui me aproximando daquela confusão sem entender nada quando que ela me viu. Atordoada, ela não sabia se me abraçava ou se batia, se mordia os próprios braços ou se beijava meu rosto com aqueles beijos salgados de alegria e desespero. Há muito ela se foi, levando consigo esses momentos que o tempo já não reproduz, retirados de vez em quando desse poço imenso chamado memória.