sábado, janeiro 12, 2019

DONA OSMARINA

Entre lembranças e surpresas que uma visitinha breve à Itaperuna, de acolhimento e calor escaldantes, nos proporciona, é de lei encomendar ou levar de vez, se tiver pronta, aquela linguicinha artesanal. Batemos palma e ela veio nos receber pelas grades da varanda. O rosto era ainda o mesmo: uma ruga nova aqui, outra acolá, algumas manchas de pele que a idade incluiu, nada que mexesse na simpatia e na expressão tranquila e segura de sempre.
Alguma dificuldade de locomoção, percebe-se quando vai conferir o que tem de estoque, e de memória. Antes nos apresentamos: “A senhora não deve se lembrar de mim”, Everardo caprichou, “sou o Dadinho, filho da Isabel, do 10 de Maio.” Algumas conexões muito antigas reconstruíram sentidos dentro dela, uma luz quase brilhou nos olhos embaçados: “Isabel, claro, lembro muito da Isabel”.
“Então você é o Dadinho”, ela emendou. Aproveitamos o lampejo e rememoramos o tempo de freguesia daquela famosa linguicinha e do “bucho recheado” (demoramos a nos convencer de que o nome não traduzia completamente a verdade da coisa). Dadinho completou: “Desde os tempos do CIEP, há quase trinta anos!” Investigativa, eu quis saber desde quando ela fazia isso que a moda convencionou chamar de artesanal. “Quarenta anos!”.
Nessa hora, num looping de sentidos, nossas memórias turbilhonaram: foi um tal de contar histórias, tempos e lembranças, em silêncio, só pra dentro, sem pronunciar palavra. Ela trouxe o que tinha, embrulhado naquele antigo papel cinza de açougue, voltou pra buscar o troco, fez mais perguntas, já não queria nos deixar partir, queria conversar, e por algum tempo mais, não sei quanto, conversamos.
Saímos silenciosos e pensativos, entramos no carro e o perfume da linguiça de porco temperada e defumada tomou conta do ambiente. Foi uma viagem no tempo, antecipando o prazer daquele momento em que, em algum lugar, sempre acompanhado de elogios, regado por algumas cervejinhas, sabor e aroma nos traria de volta, por inteiro, ponto por ponto, um tempo recuperado, como conta um livro famoso.
Misturando e temperando carnes, salgando e mexendo os potinhos de ervas, quem sabe cantando cantigas ainda mais antigas que essas memórias, Dona Osmarina talvez não faça ideia do que tudo isso provoca na gente. 
Ah, ela mandou um abraço pra Isabel, mas infelizmente já não podemos dar!

5 Comments:

Blogger Unknown said...

Lindo texto! Amei.

10:35 AM  
Blogger Everardo said...

Dona Osmarina faz parte da nossa história! Agora se tornou personagem de uma história. Parabéns pelo texto!

11:51 AM  
Blogger Isabel said...

Qual o endereço da dona osmarina. conheço a linguiça

9:14 AM  
Blogger Luciana Pessanha said...

Belíssima crônica!
Parabéns, Cleir! Feliz Aniversário! Meu abraço e abraço da Academia Itaperunense de Letras!

4:02 PM  
Blogger Unknown said...

Minha mãe mulher guerreira , obrigada pela atenção e carinho rua para 192

7:46 PM  

Postar um comentário

<< Home