O VESTIDINHO DE CROCHÊ
A água escorria entre os grãos do feijão, iluminando um a um e logo vazando lépida pelos furos da peneira, enquanto eu pensava. Pensava em tanta coisa quanto era possível minha memória intermitente acender e apagar, vagalumeando na tardezinha nublada. Eu afundava os dedos no feijão, desavisada e esquecida, como quem acaricia uma cabeleira... Ah, e como pensava!
Foi então que me veio, entre um grão e outro que se perdia em sentido horário no abismo da pia, uma lembrança que parecia perdida entre tantas, no abismo anti-horário da memória: meu vestidinho de crochê. Eu tinha lá meus nove anos. Corria há algum tempo o murmúrio de que minha madrinha de batismo, uma figura de escassa presença em minha vida, tecia no mais belo ponto de crochê um vestidinho para mim. Ouvia e fingia não ouvir, já fascinada a espera do dia em que teria nas mãos o vestidinho.
Dormia pensando na cor, acordava com sua textura, seu cheiro na memória dos sonhos, a trama dos pontos, o emaranhado da linha. Que figura ela desenhava? Uma flor, um peixe, um sol, a roda de uma mandala? Dormia com figuras possíveis para um desenho que em sonho já cobria meu corpinho, me fazendo princesa até uma meia-noite qualquer.
Depois de longa e calada agonia, voltaram os murmúrios sobre a chegada do vestido. De novo meu coração se agitava. Rebate falso: a fada-madrinha ainda tecia infinitamente a trama, mulher de Atenas, como que numa demorada e inútil espera por seus guerreiros. Soube depois que ela era solteirona, expressão irreversível e cruel para mulheres que não encontraram seus companheiros a tempo, mas estabelecido por quem? Ela vivia a tecer, caprichosa e solitária aranha, o meu vestido-teia, quem sabe para que eu não tivesse a mesma sorte dela.
Chegou então o grande dia! Minha madrinha avisou que viria nos visitar, trazendo na bagagem o encantado vestidinho. Extremamente cerimoniosa, tímida, de pouquíssimos carinhos, uma economia enorme de afeto, eu entendia mesmo sem saber bem porque o motivo daquela solteirice. Não importa, eu queria mesmo era ver o meu vestido. Confesso cruelmente que quando a vi – a aparição dela era tão rara! – senti uma certa desolação. A figura pálida, esquálida, desengonçada e triste, nunca poderia tecer o vestido que era um sonho, vigoroso, mágico, arrasador! Não, não poderia. E não pôde.
De uma pequena caixa de camisa masculina, provavelmente de um irmão ou do pai, improvisou o embrulho arrumadinho para a entrega solene. Enfim, meu vestido de crochê. Abri com mínimas expectativas e me deparei primeiro com a cor: azul clarinho. Não que eu não gostasse de azul, mas aquele parecia ter dormido meses a fio debaixo de chuva fina, e dormia ainda. A trama dos pontos também não agradou, parecia comum feito escamas de um peixe barato.
O modelo nada tinha de especial, lembrava camisola, uma pala e o resto escorrido, com o compromisso original de cobrir o corpo, apenas. Fiz cara de que gostei, será que soube fazer? Então me pediram para vestir. Fui ao quarto de minha mãe e ainda tentei, com esforço infinito, manter com aquilo um pouco de cumplicidade. Afaguei, cheirei, alisei, encostei o rosto suavemente. Nada. Era como o braço de um estranho que roça o seu, no banco do ônibus. Só incômodo e estranheza.
Tive pena dela. Como voltar à sala tão vestida de dúvidas? Como as pessoas não veriam o desapontamento em meu olhar? Mas fui, solicitaram e fui. Atravessei a sala em silêncio e parei diante dela. Estava completamente infeliz dentro daquela coisa que me transformava em um canudo magrelo e insosso. E ainda pior! Denunciava meus peitinhos brotando irrequietos e incômodos, anunciando o fim da meninice. Aquilo era o fim!
Constrangida, decepcionada, morrendo de pena, fingi que gostava, tudo para não ferir aquela que havia tecido as horas de sua vida em um vestido que eu nunca mais vestiria.
Foi então que me veio, entre um grão e outro que se perdia em sentido horário no abismo da pia, uma lembrança que parecia perdida entre tantas, no abismo anti-horário da memória: meu vestidinho de crochê. Eu tinha lá meus nove anos. Corria há algum tempo o murmúrio de que minha madrinha de batismo, uma figura de escassa presença em minha vida, tecia no mais belo ponto de crochê um vestidinho para mim. Ouvia e fingia não ouvir, já fascinada a espera do dia em que teria nas mãos o vestidinho.
Dormia pensando na cor, acordava com sua textura, seu cheiro na memória dos sonhos, a trama dos pontos, o emaranhado da linha. Que figura ela desenhava? Uma flor, um peixe, um sol, a roda de uma mandala? Dormia com figuras possíveis para um desenho que em sonho já cobria meu corpinho, me fazendo princesa até uma meia-noite qualquer.
Depois de longa e calada agonia, voltaram os murmúrios sobre a chegada do vestido. De novo meu coração se agitava. Rebate falso: a fada-madrinha ainda tecia infinitamente a trama, mulher de Atenas, como que numa demorada e inútil espera por seus guerreiros. Soube depois que ela era solteirona, expressão irreversível e cruel para mulheres que não encontraram seus companheiros a tempo, mas estabelecido por quem? Ela vivia a tecer, caprichosa e solitária aranha, o meu vestido-teia, quem sabe para que eu não tivesse a mesma sorte dela.
Chegou então o grande dia! Minha madrinha avisou que viria nos visitar, trazendo na bagagem o encantado vestidinho. Extremamente cerimoniosa, tímida, de pouquíssimos carinhos, uma economia enorme de afeto, eu entendia mesmo sem saber bem porque o motivo daquela solteirice. Não importa, eu queria mesmo era ver o meu vestido. Confesso cruelmente que quando a vi – a aparição dela era tão rara! – senti uma certa desolação. A figura pálida, esquálida, desengonçada e triste, nunca poderia tecer o vestido que era um sonho, vigoroso, mágico, arrasador! Não, não poderia. E não pôde.
De uma pequena caixa de camisa masculina, provavelmente de um irmão ou do pai, improvisou o embrulho arrumadinho para a entrega solene. Enfim, meu vestido de crochê. Abri com mínimas expectativas e me deparei primeiro com a cor: azul clarinho. Não que eu não gostasse de azul, mas aquele parecia ter dormido meses a fio debaixo de chuva fina, e dormia ainda. A trama dos pontos também não agradou, parecia comum feito escamas de um peixe barato.
O modelo nada tinha de especial, lembrava camisola, uma pala e o resto escorrido, com o compromisso original de cobrir o corpo, apenas. Fiz cara de que gostei, será que soube fazer? Então me pediram para vestir. Fui ao quarto de minha mãe e ainda tentei, com esforço infinito, manter com aquilo um pouco de cumplicidade. Afaguei, cheirei, alisei, encostei o rosto suavemente. Nada. Era como o braço de um estranho que roça o seu, no banco do ônibus. Só incômodo e estranheza.
Tive pena dela. Como voltar à sala tão vestida de dúvidas? Como as pessoas não veriam o desapontamento em meu olhar? Mas fui, solicitaram e fui. Atravessei a sala em silêncio e parei diante dela. Estava completamente infeliz dentro daquela coisa que me transformava em um canudo magrelo e insosso. E ainda pior! Denunciava meus peitinhos brotando irrequietos e incômodos, anunciando o fim da meninice. Aquilo era o fim!
Constrangida, decepcionada, morrendo de pena, fingi que gostava, tudo para não ferir aquela que havia tecido as horas de sua vida em um vestido que eu nunca mais vestiria.