quinta-feira, outubro 22, 2009

ÁGUAS BEM PASSADAS

Decididamente águas passadas não movem meus moinhos. Andei pensando que nos tornamos mais parecidos com nossos pais, na medida em que o tempo passa. Na verdade, seres do remendo, vamos compondo nossa colcha de fuxicos. Da minha mãe vejo num relance de espelhos o rosto redondo, de olhar longínquo e soberbas olheiras. E claro, a mania peculiar de contar histórias: detalhadamente, com cheirosos temperos de humor. Eu também gosto disso, de falar das gentes, seus modos, suas marcas, tudo num tempo que pode ser passado, presente ou de inventar futuros.

Do meu pai, entre as tantas tramas dessa peça, guardo uma intolerância com o passado. Melhor dizendo, uma intolerância com saudosismos e conversas lacrimosas, cheias de melancolia, como tanta gente faz. Parece que tudo aconteceu ontem, não naquele passado remoto. Vejo sua reação brusca recusando lembranças empoeiradas. Sábio ao seu modo positivo, esgueirava-se sem desculpas ou ia direto ao ponto: – O que passou, passou... Na minha criativa meninice achava aquilo muito instigante: inventava em meu pai um passado estranho, repleto de verdades inconfessáveis. Pura fantasia!

Hoje que ando rondando por ali, pelo que chamam a idade da razão, continuo fantasiosa, mas me ponho mais de acordo com meu pai. A vida urge e o vento varre lá fora. Tudo é movimento ágil, derramando-se ao longo dos dias. Como o leite pelo chão, não há como devolvê-lo de volta ao pote. Uma torrente de acontecimentos, de fatos e lendas, destinos e sentimentos, nada nunca é estanque. Mesmo aprisionada em fotos, vídeos, flashes de câmeras e memórias refeitas, a vida anda sobre trilhos lubrificados, desliza sobre o espelho das águas. Além, muito além de nossa tola tentativa e de nossa incapacidade de reter.

Por isso vou assim, lépida no presente e faminta de futuro. Sempre pronta a levantar acampamento nas horas mais altas. Sempre disposta a apagar fogueiras e varrer as brasas e as pistas com os próprios pés. E seguir adiante, deixando para trás coisas boas e também ruins. Basta que elas me sigam: não as carrego comigo. Ou que fiquem perdidas na poeira da vida que vivi. Sigo em frente, ávida por novas paragens, mais frescas estâncias, riachos de águas recentes. Aos meus filhos talvez deixe essa curiosa virtude de não remoer lembranças, nunca. De me deleitar com o presente, deixar fluir o passado e inventar o futuro. Caberá a cada um deles a escolha.

Haverão de querer os cacos que ofereço para compor os seus próprios vitrais?