quarta-feira, julho 29, 2020

COMENDO NUVEM

Para noites longas e insones, a leitura é sempre uma boa companhia. Ainda ontem, lendo um belo livro que falava de um mundo que acabou, de coisas que não existem mais, como as gemadas, por exemplo, lembrei dela na hora: minha avó Noêmia, quanta saudade! 

Mulher dura feito rocha que o mar açoita mas não quebra, teve dez filhos, no primeiro parto nasceu minha mãe e um irmãozinho que se foi pouco depois de nascer. E assim como minha mãe foi a primeira filha, fui eu a primeira neta. Morando no mesmo quintal, tive todas as regalias e mimos que eram possíveis naqueles tempos de pobreza com dignidade! Comer bolinho de arroz, feijão, carne seca, farinha e alguma hortaliça, que ela amassava com as mãos, no próprio prato, e colocava na minha boca, enquanto balançava as pernas naquele sobe-e-desce continuo, comigo no colo.

Era o céu aquele lugar! Ir com ela de manhã cedinho na horta, regar as verduras, cavucar a terra para encontrar as cenouras, descobrir quiabinhos disfarçados na folhagem, colher a alface do almoço ainda úmida de orvalho. E quando ela juntava nos braços fortes a soqueira folhuda do aipim, puxando da terra, fazendo brotar aquelas raízes graúdas, envoltas em terra preta que estufava, ainda viva, era como assistir a um parto! Eu via nascer uma raiz de aipim, de casca marrom, que logo mais, escovada e lavada, iria pra mesa, quentinha, para comer com café.

Parecia uma índia, uma xamã conhecedora profunda dos recursos naturais, curativos e mágicos. Curava com emplastos e unguentos, dos cães da casa às crianças raladas na correria do quintal. Curava inclusive a si mesma, não sei com que poção estranha, porque estava sempre serena, nunca rendida às agruras da vida. Perdeu o marido e foi perdendo os filhos, um a um, quase todos, ainda em vida, mas lá estava ela, gigante e forte como a jaqueira inabalável do imenso terreiro, nosso parque em comum.

Das últimas vezes que nos vimos, a vida já lhe cobrava liberar um reclame e uma careta, afinal, foram anos a fio de dor contida. Então ela falava e a voz embargava por nada, os olhos danavam de marejar, vertendo lágrimas sem barreiras. Eu a abraçava, ela disfarçava, como o quiabo se escondendo atrás da folha. 

Mas lembrei dela por causa da gemada, fazia as melhores do mundo! Nunca ousei provar outra! As gemas vermelhinhas de ovos de galinhas criadas soltas, no nosso quintal sem cerca, eram batidas à exaustão com açúcar cristal grosso, até que tudo virasse um creme amarelo clarinho, que eu devorava com cuidado, sorvendo, apreciando. Tenho certeza: eu comia uma nuvem.

A última vez que nos vimos foi no hospital, sabíamos que seria a última. Ela tentou me dizer coisas, se debatia e eu só pedia que se acalmasse, não precisava dizer mais nada, estava tudo dito. Queria só que descansasse e chorasse tudo, como chorei ao sair dali.