sábado, janeiro 23, 2010

PASSOU UM FILME NOIR

Fui buscar uma brisa fresca na janela do apartamento – os dias andam de um calor atordoante por aqui! – e, sabe-se lá por que cargas d’água, lembrei-me dela. Mais precisamente, sem pretender qualquer resposta definitiva, perguntei-me por ela, se vivia, se ensinava ainda, se já havia morrido. O nome dela era Rilma.

Para nós, normalistas em ebulição, chamávamos dona Rilma. Naquela altura dos anos 1970, cheias de esperança e arrebatamento diante da iminente chegada à profissão, um traço nos condenava à desconfortável comunhão com dona Rilma: o fato de sermos mulheres, talvez mais do que a vocação comum, ainda que por modos tão diversos.

Mas, vamos a ela. Parecia ter nascido antiga, não velha, exatamente, ultrapassada, talvez. Tinha seus 38, 40 anos, se é que posso avaliar daqui dessa distância que hoje se abriu entre nós. Não parecia vaidosa, nada que não bastasse um batom carmim mal traçado sobre os lábios grossos, emoldurando e borrando dentes claros.

Morava numa casa antiga e mal cuidada, de muro baixo, exatamente em frente ao portão da escola, fato que, aliás, expunha feito um nervo sua rotina de dona-de-casa. A filharada barulhenta, o marido invisível, ela grandona, mulher opulenta de cabelos cacheados e corte irregular, rente ao queixo, sempre com um ar desleixado.

Na verdade, ela toda, visto de longe, não parecia primar pelo asseio ou capricho. Chamada pela campainha da escola soando insistente para o início da aula, Rilma largava a cozinha ou o tanque de roupas, secava rapidamente as mãos na barra da saia, saía porta afora e ia dar conta de sua difícil tarefa de nos educar.

Entrava lentamente pela sala, o pensamento distante, o olhar brotando de uns olhos negros, misteriosamente tristes, parecia atriz de filme noir em preto e branco ou sépia, quando muito, por mais que os vestidos fossem floridos e as roupas antiquadas, avessas à moda por opção ou simples descaso. Era uma mulher inteligente.

Sempre me pareceu que tivesse um mundo perdido dentro de si. Uma Atlântida no fundo das águas barrentas, querendo emergir. Um infinito particular em que a vaidade passava ao largo. Sapatos, brincos e roupas, exceto o batom, não tinham lá relevância. Era sensível, eu sabia. Talvez só eu percebesse e respeitasse seu fundo falso, as meninas sempre se referindo a ela com certa crueldade, como se fosse plana.

Psicologia da Educação era sua disciplina. Pouco aprendi do que falava; quando ela entrava, eu saía para um mundo de suposições; quem seria aquela mulher tão estranha? Lembro, aliás, de uma única coisa que ensinava: a história do cão de Pavlov e a teoria dos reflexos condicionados: alimentado sempre que soava a campainha, o cão salivava a cada novo toque, mesmo na ausência do alimento.

Olhando para a imagem dela guardada num canto da memória, lembrando de um tempo leve, com textura, cheiro, sabor e cor, mas irremediavelmente perdido no passado, pareço salivar também, agora, quando uma campainha distante soa em meus ouvidos quase ao fim de mais um dia, a um ponto de encerrar essa história.