domingo, junho 05, 2016

ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA

Era uma noite escura, muito escura, tão escura que o mundo parecia que nunca mais veria a luz. Naquela vila esquecida, a mulher que tinha um coração estranho e sonhos confusos, abraços de longos braços que abarcavam o que não podia sustentar, sofria debruçada na janela. Não sei que pensamentos tinham feito antes a mulher branca de olhos negros abraçar a filha, colocá-la no berço bem ao lado da sua cama, na casa de pau-a-pique, chão de cimento cru e telhas de barro, que das frestas se viam as estrelas, caso a noite não fosse um breu.
Nesse quarto, nessa casa sua, vivia a mulher com seu homem, que lhe dera uma filha morena de olhos grandes; vivia um amor e o resto de incertezas, tantas e tão fortes que nem mesmo os búzios, sequer as cartas, o pai de santo, nada, ninguém poderia antever o futuro. Era aquele pouco e era tudo que tinha a mulher noturna, da brancura da lua, dos olhos de noite profunda; um quarto rodeado de paredes nuas, uma cama e um berço. Ela, uma filha e o homem que amava. E dois olhos de olhar lá fora, tudo no espelho da escuridão.
Naquela noite, porém, as coisas não andaram bem; e sobre a cabeça dessa mulher pairou uma tempestade, imóvel no olho do furacão, a espiral do redemoinho sugava, expelia motivos e brigou à exaustão com o homem que amava, brigou com aquele incerto futuro. Doeu feito um punhal em brasa, doeu duas vezes, de sangrar e de arder, de ferida e cauterização; doeu também pela menina magrela de olhos grandes, que ressonava no berço; doeu pela casa que não teria, pelo pesadelo e doeu pelo sonho de um lar.
Doía tanto que precisava respirar grande, respirar com os pulmões abertos e fome de ar, de mais ar. Era perto da meia noite quando escancarou a janela e sorveu o ar infestado do cheiro de jaca, era dezembro, e a jaqueira frondosa, dona do terreiro, fruteou como nunca! Chorou quase aos guinchos, sofria e chorava. Estava só, sob um imenso céu de ônix, debruçada na janela com vista para o nada. E aí o pior aconteceu, por detrás do tronco largo da árvore, da espessura da noite, surgiu a criatura miúda, de precisos saltos e olhos de fogo.
Veio rapidamente em sua direção, o que era aquilo? De que fundo sem fundo da imaginação, de que olhos afogados de medo e lágrimas, de que certezas abstratas surgiu? As pernas faltaram, o pavor veio aos braços, um grito perdido no labirinto da noite. Bateu com força a folha da janela contra a moldura. E girou a tramela, largando-se sobre a cama. No baque a menina acordou. Abraçaram-se e permaneceram juntas por alguns minutos, por um tempo incerto, por um repertório de histórias, por muitos e muitos anos, até o dia em que o inevitável as separou.