Parte I
A primeira, senão a última providência
indispensável em toda viagem será sempre a procura de alguém que nos leve até o
aeroporto. Desde algumas viagens temos contratado os serviços do João de Cá,
uma figura sem igual, cheio da malandragem tipicamente carioca, mas muito sério
com o trabalho dele. Quando fala, parece que canta com aquela mistura de Zeca
Pagodinho e Bezerra da Silva. Mora nas quebradas, lá pelos lados do Caramujo,
desde quando a área era só de gente fina e trabalhadora, que não se metia com coisa errada. Portanto, um sujeito
respeitado mesmo pelo bonde que hoje se dedica a negócios mais pesados.
Da mesma forma, quando chegamos ao nosso destino,
em Nova York, contratamos o serviço do João de Lá, indicado pelo primo que voou
para a América há alguns anos. O incansável João de Lá é um brasileiro
orgulhoso do trabalho que faz, já devidamente socializado daquilo que é
necessário fazer (ou não fazer) para ser alguém naquelas outras quebradas. Segundo
ele, só trabalhando muito, mas quem trabalha muito, vence! E ele tem um bom
carro, é verdade, chega todo nos trinques, bem vestido, cheio das tecnologias
(que incluiu aquele ponto eletrônico no ouvido direito), prestativo e vaidoso
por estar vencendo.
João de Lá criou um filho, deu-lhe estudo, e hoje
empreendem em sociedade no serviço de transportes e numa empresa imobiliária. É
falante, tropeça às vezes na norma culta da língua portuguesa, mas quem não
tropeçaria depois de vinte anos de imersão no inglês? É totalmente dono da
verdade, não sei se só para impor autoridade em face de brasileiros vivendo
as agruras que vivemos no Brasil de hoje. E eu dou linha, faço perguntas, provoco
e sou cutucada pelos meus meninos a cada nova pergunta, receosos de que tenhamos
de ficar calados diante das barbaridades ditas pelo João de Lá.
Por exemplo, ele nos pergunta, se tivéssemos que
lembrar de um herói brasileiro, quem citaríamos? Ah, sim, talvez Tiradentes,
quase esquecido na história, ele diz. Mas
a América não, a América está cheia de heróis: e desfia toda a alta banca e
indústria norte-americana cujos nomes estão por toda parte, nos edifícios, nas
praças e avenidas. Penso no que não faria algum juiz comprometido com um golpe
de Estado, interessado na promiscuidade das relações entre dinheiro e poder,
mas prefiro não falar. Psicólogo por intuição, João de Lá leu que meninas
tatuadas e de piercing querem chamar atenção por carência afetiva!
Escuto, rio por dentro e faço a
egípcia. Voltando ao Rio, o mesmo seu João de Cá que nos levou, agora nos
traz de volta para casa. Falou pouco, sempre enfadado, com seu vocabulário
restrito, mas preciso. Umas gírias aqui; outras palavras, que ganham novo
sentido quando pronunciadas por ele, logo ali. Com seu jeito mastigado de
falar, rumina as palavras antes de liberá-las aos nossos ouvidos. Solidário,
seu João de Cá não deixa de notar que a miséria e a pobreza, que julgávamos
definitivamente superadas, estão de volta ao Brasil. Mas ainda tem esperança de
que as coisas sejam revertidas num futuro, quem sabe breve.
Parte II
Na ida, no trajeto entre o aeroporto e o hotel, João
de Lá elogiava o estilo de vida americano, sobretudo guardando distância da brasileirada de lá. Muitos estão
ilegais, fugiram de dívidas no Brasil, não têm estudo e não aprendem a falar o
inglês direito, acabam no trabalho braçal. Faz exceção, claro, para o meu
primo, um cara sério e trabalhador! Mas, de uma maneira geral, os brasileiros
não gostam muito de trabalhar, preferem o expediente mais fácil. Só eu
provocava o João de Lá, meus três meninos, tensos, pareciam me reprovar, mas
sou assim mesmo, curiosa, espírito zombeteiro e sacana, desde Itambi.
Até que meu saco também encheu! Ele fazia uma
explanação detalhada sobre o futebol daqui –era palmeirense – e dei minha cutucada:
vocês vivem aqui, estão felizes aqui, estão realizados, mas não se desligam do
Brasil! Você, por exemplo, João de Lá, está sabendo mais do nosso futebol do
que nós! Ele acusou o golpe, mas não recuou, tentou reagir, entre surpreso e
irritado, se fazendo de bobo. Partiu para o contra-ataque, argumentando que nós
também não tiramos os olhos de lá, copiamos tudo que os americanos fazem. Está
certo, senta lá, João de Lá, ainda padecemos do complexo de vira-latas, mas já
fomos bem pior.
Chegamos ao Rio, depois da eternidade de dez horas
dentro daquela cápsula, voando mais alto que minha imaginação. Tensos e
cansados, irritadiços com o calor, já arrancando casacos, meias e luvas porque
o maçarico estava aceso, fomos ao encontro do João de Cá no estacionamento do
aeroporto. A mesma confusão de sempre: taxistas, motoristas de uber e
pessoas tentando ajudar, ou atrapalhar, não sei. Encostado na mureta, tranquilo
e de boa, avisou que apanharia o carro e viria até aquele ponto nos buscar. Malas
acomodadas no Doblò possante, com ar e tudo, seguimos pra Nikiti.
De novo eu puxo assunto, perguntando pelas
novidades daqui, entre a ida e a volta, como se o mundo não fosse globalizado e
não existisse a internet. Seu João de Cá caiu no meu papo e lançou a bomba:
prenderam o Picciani. Hum, é verdade, isso nós ficamos sabendo. E não precisei
falar mais nada. Ele desenrolou o novelo de linhas mais ou menos confusas, mas
com a sensibilidade de quem vive o dia a dia do seu país, nas durezas e nas
desventuras, sem se deixar enganar com qualquer embromação. Quem vive em
comunidade tem a pele calejada, sabe identificar quem e o que, de fato, está do
seu lado.
Seu João de Cá empolgou e subiu no palanque. Eu
aplaudi da linha vermelha até a Gavião. Quando dobramos na nossa rua ele fechou
com chave de ouro: – Esse povo que
assiste a Globo e acredita nela não sabe os milhão que eles deve de imposto. Se
eles pagasse o que deve a gente não tava ferrado assim. Entramos na
garagem, ele desceu nossas malas e nos despedimos. Enquanto passava rapidamente
um filme pela minha cabeça, sobre a diferença entre o João daqui e o João às
voltas com os dribles da vida do lado de lá, um dos meus meninos falou, na matemática
da internet: João de Cá >>> João de Lá!
E caímos todos na gargalhada!