quinta-feira, agosto 17, 2023

O PODER DAS MARGARIDAS

 Margarida é uma tímida florzinha, linda que só ela! Tem as pétalas delicadas e brancas contornando o miolo amarelo, parece um quindim – seria uma flor ou um doce? Eu tenho uma amiga margarida, a Margarida. Estamos distantes e muito próximas. Nunca tivemos um longo convívio cotidiano, não moramos mais na mesma cidade, mas nos entendemos como poucos, que às vezes vivem juntos uma eternidade.


Um dia desses pensei que ela poderia ter sido minha irmã. Imaginei que a gente poderia ter crescido juntas numa cidadezinha qualquer, dividido as mesmas roupas, passeado pelas ruas tomando um sorvete, compartilhado livros e ido ao cinema… Porque eu sei que ela gosta das ilusões das telas, do mesmo jeito que ela, sabendo que eu gosto de muitas futilidades na vida, poderia ver a vitrine das lojas comigo.


Também sinto uma saudade estranha dela, uma saudade não sei do quê, do que nunca existiu. Assim, como o oco de uma árvore, que não se vê mas está lá, repleta da memória das coisas que não fizemos. Mas que a gente quase pode tocar, que um pequeno toque de mágica pode cristalizar, transformar em coisa de apanhar com a mão. Porque, na real, ela é mesmo, ainda que não tenha sido, uma irmã, uma  predestinada amiga. 


A literatura também nos aproxima. Aliás, coisa nenhuma nos afasta. Ela gosta de ler as breves coisinhas que eu às vezes escrevo e eu adoro tudo que descubro nas entrelinhas do que leio dela. Ela está sempre lá, eu estou sempre aqui. Mas a gente sabe que é só chamar: pelo e-mail, mais longamente; pelo WhatsApp ou pelo Instagram. Pode chamar também assim, por uma espécie de telepatia: oi, você está aí?


Às vezes penso como espelhos, que gostaria de tornar algumas coisas mais visíveis para ela. A grandeza da pessoa que ela é, por exemplo, mas fico tímida. Sei lá, a timidez silenciosa e fria de um jogo de espelhos. Mostrar a ela que isso talvez multiplique a força que emana de mil margaridinhas juntas! Ela nem sabe que tem muito mais que mil margaridinhas dentro dela. Por isso penso e espero por esse dia. 


O dia em que um tanto de pétalas brancas e miolinhos amarelos entrarem em combustão. Esse dia há de reverberar uma beleza e uma doçura capaz de assombrar o mundo. Vai que a Margarida descobre o poder que tinha e tem...


Aguardo ansiosa e atenta.

quarta-feira, julho 29, 2020

COMENDO NUVEM

Para noites longas e insones, a leitura é sempre uma boa companhia. Ainda ontem, lendo um belo livro que falava de um mundo que acabou, de coisas que não existem mais, como as gemadas, por exemplo, lembrei dela na hora: minha avó Noêmia, quanta saudade! 

Mulher dura feito rocha que o mar açoita mas não quebra, teve dez filhos, no primeiro parto nasceu minha mãe e um irmãozinho que se foi pouco depois de nascer. E assim como minha mãe foi a primeira filha, fui eu a primeira neta. Morando no mesmo quintal, tive todas as regalias e mimos que eram possíveis naqueles tempos de pobreza com dignidade! Comer bolinho de arroz, feijão, carne seca, farinha e alguma hortaliça, que ela amassava com as mãos, no próprio prato, e colocava na minha boca, enquanto balançava as pernas naquele sobe-e-desce continuo, comigo no colo.

Era o céu aquele lugar! Ir com ela de manhã cedinho na horta, regar as verduras, cavucar a terra para encontrar as cenouras, descobrir quiabinhos disfarçados na folhagem, colher a alface do almoço ainda úmida de orvalho. E quando ela juntava nos braços fortes a soqueira folhuda do aipim, puxando da terra, fazendo brotar aquelas raízes graúdas, envoltas em terra preta que estufava, ainda viva, era como assistir a um parto! Eu via nascer uma raiz de aipim, de casca marrom, que logo mais, escovada e lavada, iria pra mesa, quentinha, para comer com café.

Parecia uma índia, uma xamã conhecedora profunda dos recursos naturais, curativos e mágicos. Curava com emplastos e unguentos, dos cães da casa às crianças raladas na correria do quintal. Curava inclusive a si mesma, não sei com que poção estranha, porque estava sempre serena, nunca rendida às agruras da vida. Perdeu o marido e foi perdendo os filhos, um a um, quase todos, ainda em vida, mas lá estava ela, gigante e forte como a jaqueira inabalável do imenso terreiro, nosso parque em comum.

Das últimas vezes que nos vimos, a vida já lhe cobrava liberar um reclame e uma careta, afinal, foram anos a fio de dor contida. Então ela falava e a voz embargava por nada, os olhos danavam de marejar, vertendo lágrimas sem barreiras. Eu a abraçava, ela disfarçava, como o quiabo se escondendo atrás da folha. 

Mas lembrei dela por causa da gemada, fazia as melhores do mundo! Nunca ousei provar outra! As gemas vermelhinhas de ovos de galinhas criadas soltas, no nosso quintal sem cerca, eram batidas à exaustão com açúcar cristal grosso, até que tudo virasse um creme amarelo clarinho, que eu devorava com cuidado, sorvendo, apreciando. Tenho certeza: eu comia uma nuvem.

A última vez que nos vimos foi no hospital, sabíamos que seria a última. Ela tentou me dizer coisas, se debatia e eu só pedia que se acalmasse, não precisava dizer mais nada, estava tudo dito. Queria só que descansasse e chorasse tudo, como chorei ao sair dali.

quinta-feira, abril 09, 2020

VAI PASSAR

Acho que ninguém nunca me perguntou acredito em Deus. Mas, temente e respeitosa, cheia de adoração e fé, respondo em silêncio pra mim mesma: eu acredito. Embora nas minhas aflições e nos meus agradecimentos a imagem que evoco é a de um velho com longas barbas brancas, o olhar sereno e firme de quem tudo sabe e tudo pode, algo me diz, com quase toda certeza, que Ele é pura energia. Também acredito que as religiões são misteriosos canais de conexão com essa energia (claro, desde que não faça comércio da fé alheia, visando enriquecimento e domínio de território).

Ouvi de uma amiga que um parente espírita teria comentado que alguém recebeu uma mensagem espiritual contendo o alerta de que o Bem e o Mal estariam travando uma luta mortal em algum lugar do espaço, nesse momento sombrio. E que nós fazemos parte desse combate: precisamos de prece, muita prece, muita luz e boas vibrações, energia positiva pra favorecer o lado bom! Na minha ingenuidade nessas coisas de fé e espiritualidade, assumi que vejo sentido, que concordo muito com tudo isso. E aí lembrei de uma história curiosa e divertida que rolava na minha família.

Certa noite, um tio cético, ateu convicto, que debochava frequentemente dos tementes a Deus da família, saiu para pescar nas águas turvas, bem ali no fundo da baía de Guanabara. A mesma baía que trazia peixe e caranguejo, que dava a madeira de mangue para sustento da velha Vila de Itambi, e que, ainda por cima, rendia histórias infinitas. A dele garantia gostosas gargalhadas nas noites calorentas, ao luar, debaixo da grande jaqueira do quintal, quando a família se reunia pra prosear e, claro, zombar uns dos outros.

A pescaria noturna do tio foi surpreendida pela súbita virada da canoa, todos mergulhados nas águas escuras e espessas, saturadas de lodo e óleo, naquele canto sem glamour da baía. Meu tio não sabia nadar, e não sendo homem de fé, era candidato certo à tragédia. Em desespero, tratou de gritar e implorar clemência, rogando a uma santa desconhecida por toda aquela comunidade piedosa: valei-me minha Nossa Senhora do Ó! Guiado pela fé até a margem, são e salvo, teve que explicar depois a toda a família, que gritaria era aquela, que santa era aquela que ninguém conhecia. Claro que virou trolagem na família: nosso pobre tio nunca mais duvidou da fé de ninguém, muito menos da dele.

Nesses dias em que a tristeza mais reforça minha crença na existência de Deus, em forma de energia ou de luz ou de bondade, rogo a Ele que se manifeste nesse planeta tão estranho - repleto de gente que parece crente por fora, mas esconde oportunismo e descrença por dentro, como também daqueles (como meu pobre tio) que trazem só pra si uma fé que não revelam externamente - que se manifeste e traga paz e esperança aos corações, renovando nossa humanidade, nosso amor ao próximo. Que nos dê mais uma chance de provar nossa capacidade de amar e de cuidar da Casa-Terra, dando força e sentido à nossa prece: vai passar, vai passar...

quarta-feira, janeiro 15, 2020

PÉ DE PATA, MANGALÔ, TRÊS VEZES!

Minha avó tinha uma pata formosa, a mais linda e gorducha do quintal. De andar remado, matreira e empoderada, desfilava pelo terreiro como rainha da passarela. Dava gosto de ver a bichona gingar de bico erguido, passos de quem ensaia um voo que não decola nesse seu espaço soberano. - Essa jamais vai pra panela! - dizia minha vó, orgulhosa da mais bela obra de sua criação! 

A casa era de roça, vida sem muros, vizinhança que nem precisava de anúncio, foi assim que a dona entrou, cheia das conversas,
vontade de prosear e contar vantagens. Sabíamos da fama daquela peça: muito papo, muita marra e um desejo enorme por tudo que fazia a felicidade do outro - a tal da inveja, sabe o que é? Pois não tardou a botar os olhos gordos na pata e se encantar: que dama! Dali pra frente, travou uma luta inglória com minha vó pra que lhe vendesse a bicha. Muitas negativas depois, vencida definitivamente, lá se foi em total contrariedade. Exausta do embate, Vovó foi se refazer com um café quentinho, uma broa e a velha cadeira de descanso. 

Cochilou, acordou com os gritos dos netos: Vó, sua pata tá estrebuchando! Correu lá e nada pode fazer, a preferida deu o último suspiro e partiu num voo inesperado e final. De nada adiantaria qualquer figa de espantar o azar, em qualquer idioma ou crença, pé de pato, mangalô, livrai-nos do mal, amém! Essa história corre gerações na família crédula, dessa vez convencida pela evidência incontestável de que olho gordo mata pata, além de outros estragos...

sábado, janeiro 12, 2019

DONA OSMARINA

Entre lembranças e surpresas que uma visitinha breve à Itaperuna, de acolhimento e calor escaldantes, nos proporciona, é de lei encomendar ou levar de vez, se tiver pronta, aquela linguicinha artesanal. Batemos palma e ela veio nos receber pelas grades da varanda. O rosto era ainda o mesmo: uma ruga nova aqui, outra acolá, algumas manchas de pele que a idade incluiu, nada que mexesse na simpatia e na expressão tranquila e segura de sempre.
Alguma dificuldade de locomoção, percebe-se quando vai conferir o que tem de estoque, e de memória. Antes nos apresentamos: “A senhora não deve se lembrar de mim”, Everardo caprichou, “sou o Dadinho, filho da Isabel, do 10 de Maio.” Algumas conexões muito antigas reconstruíram sentidos dentro dela, uma luz quase brilhou nos olhos embaçados: “Isabel, claro, lembro muito da Isabel”.
“Então você é o Dadinho”, ela emendou. Aproveitamos o lampejo e rememoramos o tempo de freguesia daquela famosa linguicinha e do “bucho recheado” (demoramos a nos convencer de que o nome não traduzia completamente a verdade da coisa). Dadinho completou: “Desde os tempos do CIEP, há quase trinta anos!” Investigativa, eu quis saber desde quando ela fazia isso que a moda convencionou chamar de artesanal. “Quarenta anos!”.
Nessa hora, num looping de sentidos, nossas memórias turbilhonaram: foi um tal de contar histórias, tempos e lembranças, em silêncio, só pra dentro, sem pronunciar palavra. Ela trouxe o que tinha, embrulhado naquele antigo papel cinza de açougue, voltou pra buscar o troco, fez mais perguntas, já não queria nos deixar partir, queria conversar, e por algum tempo mais, não sei quanto, conversamos.
Saímos silenciosos e pensativos, entramos no carro e o perfume da linguiça de porco temperada e defumada tomou conta do ambiente. Foi uma viagem no tempo, antecipando o prazer daquele momento em que, em algum lugar, sempre acompanhado de elogios, regado por algumas cervejinhas, sabor e aroma nos traria de volta, por inteiro, ponto por ponto, um tempo recuperado, como conta um livro famoso.
Misturando e temperando carnes, salgando e mexendo os potinhos de ervas, quem sabe cantando cantigas ainda mais antigas que essas memórias, Dona Osmarina talvez não faça ideia do que tudo isso provoca na gente. 
Ah, ela mandou um abraço pra Isabel, mas infelizmente já não podemos dar!

quarta-feira, junho 13, 2018

O POÇO


Houve um tempo em que toda casa de roça que se prezava tinha um poço. Na minha rua tinha a nossa casa e o nosso poço, ele era o tormento da minha mãe. Sempre à beira de um ataque de nervos, espiando o mundo com as lentes da tragédia (ah, como eu me reconheço!), mamãe esperava o dia em que uma criança cairia no poço. Sim, ela tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde uma de nós (e éramos muitas!) acabaria mergulhando no largo pescoço daquele poço sem fundo. Meu avô por precaução havia colocado uma tampa de madeira pesada, mas quem dizia que os usuários cuidavam de fechar? Por ela, o poço deveria ser abandonado, lacrado ou aterrado para sempre, escondendo na escuridão de seu remanso o lodo e as criaturas que brotavam da terra úmida, mudas sereias telúricas com seus cantos abafados. 

Mas o poço tinha suas utilidades, quase mil e uma, desde molhar as plantas e regar a horta até lavar a roupa e as louças e banhar os animais. Sem falar na função estratégica de umedecer o terreiro antes da vassoura, pelo bem dos narizes que trocavam a poeira pelo cheiro bom de terra molhada. Dele também saíam as rãs que minha tia pescava na caçamba de lata improvisada na ponta do bambu, com as quais minha avó preparava deliciosas e suculentas canjas. Eu comia aterrorizada pelas gargalhadas do primo, que dizia serem de sapo aquelas perninhas magras que boiavam no arroz. A água de beber vinha de longe, não dali: íamos buscar em vasilhas próprias, grandes latas apoiadas na cabeça, protegida por rodilhas de pano para não machucar o coco, lá na bica comunitária no centro da Vila. Enchíamos as talhas, os filtros e os latões de cozinhar. 

O poço tinha lá seus usos e defensores, por isso se manteve firme ao longo dos anos. Até que um dia a profecia de minha mãe se realizou, ou quase. Pelo menos naquela doce e assustada cabeça louca, repleta de medos e monstros e sacis e florestas assombradas. Muito menina e tímida, passei miúda e silenciosa por detrás dela, que na pia lavava louças, sem que ela visse. Quando precisou de mais água e foi ao poço, encontrou a tampa aberta e um ligeiro brilho d’água tremelicando lá no fundo, como se algo tivesse caído. Já entorpecida pelo pavor, chamou meu nome “Cleir, Cleir”, e eu distraída não ouvi. Gritou muito, gritou alto e forte, repetidas vezes, em prantos, seus irmãos fizeram um esforço enorme para impedi-la de saltar em meu socorro. Cordas iam sendo amarradas ao corpo do tio mais leve para resgatar o pobre corpinho da sobrinha que a essa altura se julgava afogada, morta irremediavelmente. 

Fui me aproximando daquela confusão sem entender nada quando que ela me viu. Atordoada, ela não sabia se me abraçava ou se batia, se mordia os próprios braços ou se beijava meu rosto com aqueles beijos salgados de alegria e desespero. Há muito ela se foi, levando consigo esses momentos que o tempo já não reproduz, retirados de vez em quando desse poço imenso chamado memória.



sábado, novembro 18, 2017

O JOÃO DE CÁ E O DE LÁ

Parte I

A primeira, senão a última providência indispensável em toda viagem será sempre a procura de alguém que nos leve até o aeroporto. Desde algumas viagens temos contratado os serviços do João de Cá, uma figura sem igual, cheio da malandragem tipicamente carioca, mas muito sério com o trabalho dele. Quando fala, parece que canta com aquela mistura de Zeca Pagodinho e Bezerra da Silva. Mora nas quebradas, lá pelos lados do Caramujo, desde quando a área era só de gente fina e trabalhadora, que não se metia com coisa errada. Portanto, um sujeito respeitado mesmo pelo bonde que hoje se dedica a negócios mais pesados.
Da mesma forma, quando chegamos ao nosso destino, em Nova York, contratamos o serviço do João de Lá, indicado pelo primo que voou para a América há alguns anos. O incansável João de Lá é um brasileiro orgulhoso do trabalho que faz, já devidamente socializado daquilo que é necessário fazer (ou não fazer) para ser alguém naquelas outras quebradas. Segundo ele, só trabalhando muito, mas quem trabalha muito, vence! E ele tem um bom carro, é verdade, chega todo nos trinques, bem vestido, cheio das tecnologias (que incluiu aquele ponto eletrônico no ouvido direito), prestativo e vaidoso por estar vencendo.
João de Lá criou um filho, deu-lhe estudo, e hoje empreendem em sociedade no serviço de transportes e numa empresa imobiliária. É falante, tropeça às vezes na norma culta da língua portuguesa, mas quem não tropeçaria depois de vinte anos de imersão no inglês? É totalmente dono da verdade, não sei se só para impor autoridade em face de brasileiros vivendo as agruras que vivemos no Brasil de hoje. E eu dou linha, faço perguntas, provoco e sou cutucada pelos meus meninos a cada nova pergunta, receosos de que tenhamos de ficar calados diante das barbaridades ditas pelo João de Lá.
Por exemplo, ele nos pergunta, se tivéssemos que lembrar de um herói brasileiro, quem citaríamos? Ah, sim, talvez Tiradentes, quase esquecido na história, ele diz.  Mas a América não, a América está cheia de heróis: e desfia toda a alta banca e indústria norte-americana cujos nomes estão por toda parte, nos edifícios, nas praças e avenidas. Penso no que não faria algum juiz comprometido com um golpe de Estado, interessado na promiscuidade das relações entre dinheiro e poder, mas prefiro não falar. Psicólogo por intuição, João de Lá leu que meninas tatuadas e de piercing querem chamar atenção por carência afetiva!
Escuto, rio por dentro e faço a egípcia. Voltando ao Rio, o mesmo seu João de Cá que nos levou, agora nos traz de volta para casa. Falou pouco, sempre enfadado, com seu vocabulário restrito, mas preciso. Umas gírias aqui; outras palavras, que ganham novo sentido quando pronunciadas por ele, logo ali. Com seu jeito mastigado de falar, rumina as palavras antes de liberá-las aos nossos ouvidos. Solidário, seu João de Cá não deixa de notar que a miséria e a pobreza, que julgávamos definitivamente superadas, estão de volta ao Brasil. Mas ainda tem esperança de que as coisas sejam revertidas num futuro, quem sabe breve.

Parte II

Na ida, no trajeto entre o aeroporto e o hotel, João de Lá elogiava o estilo de vida americano, sobretudo guardando distância da brasileirada de lá. Muitos estão ilegais, fugiram de dívidas no Brasil, não têm estudo e não aprendem a falar o inglês direito, acabam no trabalho braçal. Faz exceção, claro, para o meu primo, um cara sério e trabalhador! Mas, de uma maneira geral, os brasileiros não gostam muito de trabalhar, preferem o expediente mais fácil. Só eu provocava o João de Lá, meus três meninos, tensos, pareciam me reprovar, mas sou assim mesmo, curiosa, espírito zombeteiro e sacana, desde Itambi.
Até que meu saco também encheu! Ele fazia uma explanação detalhada sobre o futebol daqui –era palmeirense – e dei minha cutucada: vocês vivem aqui, estão felizes aqui, estão realizados, mas não se desligam do Brasil! Você, por exemplo, João de Lá, está sabendo mais do nosso futebol do que nós! Ele acusou o golpe, mas não recuou, tentou reagir, entre surpreso e irritado, se fazendo de bobo. Partiu para o contra-ataque, argumentando que nós também não tiramos os olhos de lá, copiamos tudo que os americanos fazem. Está certo, senta lá, João de Lá, ainda padecemos do complexo de vira-latas, mas já fomos bem pior.
Chegamos ao Rio, depois da eternidade de dez horas dentro daquela cápsula, voando mais alto que minha imaginação. Tensos e cansados, irritadiços com o calor, já arrancando casacos, meias e luvas porque o maçarico estava aceso, fomos ao encontro do João de Cá no estacionamento do aeroporto. A mesma confusão de sempre: taxistas, motoristas de uber e pessoas tentando ajudar, ou atrapalhar, não sei. Encostado na mureta, tranquilo e de boa, avisou que apanharia o carro e viria até aquele ponto nos buscar. Malas acomodadas no Doblò possante, com ar e tudo, seguimos pra Nikiti.
De novo eu puxo assunto, perguntando pelas novidades daqui, entre a ida e a volta, como se o mundo não fosse globalizado e não existisse a internet. Seu João de Cá caiu no meu papo e lançou a bomba: prenderam o Picciani. Hum, é verdade, isso nós ficamos sabendo. E não precisei falar mais nada. Ele desenrolou o novelo de linhas mais ou menos confusas, mas com a sensibilidade de quem vive o dia a dia do seu país, nas durezas e nas desventuras, sem se deixar enganar com qualquer embromação. Quem vive em comunidade tem a pele calejada, sabe identificar quem e o que, de fato, está do seu lado.
Seu João de Cá empolgou e subiu no palanque. Eu aplaudi da linha vermelha até a Gavião. Quando dobramos na nossa rua ele fechou com chave de ouro: – Esse povo que assiste a Globo e acredita nela não sabe os milhão que eles deve de imposto. Se eles pagasse o que deve a gente não tava ferrado assim. Entramos na garagem, ele desceu nossas malas e nos despedimos. Enquanto passava rapidamente um filme pela minha cabeça, sobre a diferença entre o João daqui e o João às voltas com os dribles da vida do lado de lá, um dos meus meninos falou, na matemática da internet: João de Cá >>> João de Lá!

E caímos todos na gargalhada!